OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


26.6.06  




33 parágrafos depois da marcha e do arraial

1. Movimento LGBT organizado, só o temos há uma dezena de anos.
2. Temos sete anos de marcha e dez de Arraial Pride.
3. A primeira foi crescendo e este ano decresceu um pouco.
4. O segundo tem vindo a crescer.
5. No caso da marcha, o decréscimo deste ano poderá dever-se à falta de publicidade motivada pela ausência de recursos do movimento (NÃO há lobby gay...).
6. No caso do arraial, foi um sucesso e uma vitória ter conseguido regressar ao centro da cidade.
7. Já se sabe que para muita gente, uma coisa é dar a cara na marcha, em pleno dia e avenida, e outra estar no meio de uma multidão numa festa nocturna.
8. E já se sabe que uma coisa é manifestar-se, outra divertir-se.
9. Começa a ser uma originalidade portuguesa: ter uma marcha política (e não um corso, como noutras cidades), seguida duma festa.
10. Cresceria a marcha se fosse comercializada e "carnavalizada"? Talvez.
11. Seria bom ou mau? Não sei.
12. Ganharíamos se o Arraial Pride fosse mais politizado? Talvez. (E há maneiras de o fazer sem ser chato e sem alimentar o novo apoliticismo).
13. Seja como for: a coisa boa é que o movimento apareceu, cresceu, ganhou raizes e hoje a sociedade portuguesa não escapa à política da orientação sexual.
14. E não basta a mediatização globalizada. Sem movimento local não haveria nada.
15. O movimento não cresceu tanto ou tão depressa quanto desejável? Ainda faltam uns anos para ver isso, embora convenha levar a sério essa suspeita. Mas marcámos agenda. A política institucional sente-se obrigada a prestar atenção. Os media sensibilizaram-se. A a pedagogia (a tal "mudança de mentalidades") está sendo feita. Muito mudou.
16. E uma nova geração de activistas surge. Poucos? Talvez. Mas isso é apenas proporcional à escala do movimento.
17. Os problemas do movimento (e da dificuldade de "movimentação") não são diferentes dos problemas sentidos por outras causas.
18. A não ser num importante "pormenor": a invisibilidade por causa da homofobia. Esta é a especificidade do "problema" LGBT. (Quem não percebe isto não percebe o porquê da expressão "Orgulho"; nem a marcha).
19. Isto à parte, os movimentos sofrem todos dos mesmos problemas nacionais.
20. Uns são históricos: será preciso repetir que este é um país marginal, pequeno (não falo da demografia apenas), pouco letrado, pouco cosmopolita, familista?
21. Outros são novos, ou foram recentemente intensificados: um país de precaridade em tanta coisa, um país de dependentes (da família, do apreço dos outros, da imagem).
22. Outros juntam as duas coisas: o salto brusco duma quase pré-modernidade para o mundo de hoje, sem a sedimentação do que noutras paragens mediou ambos - a educação, a literacia, a internacionalização, a interiorização dos direitos...
23. Tudo isto exponencia o parágrafo 18.
24. Tudo isto faz com que as vidas da maioria dos e das LGBTs seja de adaptação: uns interiorizam a hegemonia, outros "safam-se" manipulando os mecanismos mesmos que os oprimem.
25. Nos dias de hoje (ver parágrafo 21), paradoxalmente (porque supostamente as "mentalidades abriram-se") isto ainda é mais eficaz. É a Era do Esquema.
26. O movimento surge para atacar os problemas de um milhão de pessoas que desde crianças aprendem que devem ter vergonha, que não prestam, que fizeram algo de mal, que vão perder muito.
27. Mas surge, como é natural num contexto como o nosso, como "sucursal" (não tenho má intenção no uso desta palavra; também o telefone não foi inventado em Portugal), como aplicação local do "lá fora".
28. Falta-nos talvez saber melhor como funciona isto aqui. Perceber - e este é um exemplo entre mil - o que leva mesmo (isto é, a mistura entre factores sociais e inclinações emocionais) as pessoas a não se voluntariarem, a irem mais ao arraial do que à marcha, a defenderem o status quo.
29. A irracionalidade não pode ser a explicação. Precisamos perceber qual a racionalidade em jogo. Precisamos - e puxo a brasa a uma das minhas sardinhas - de gente das ciências sociais trabalhando nisto.
30. Trabalhando para lá da (necessária) identificação dos valores (tanto inquérito já, meus deuses...). Precisamos de perceber como eles são vividos, postos em acção, negociados. Precisamos de etnografia.
31. Teoria até já temos. Sobre a homofobia e o patriarcado. E funcionamos "por instinto" - político e a partir das nossas experiências de vida. E em condições de desprezo quase absoluto por parte de estado, privados, e cidadãos em relação ao trabalho de quem luta por direitos e pela transformação das mentalidades que sempre nos dizem ser precondição para a mudança...
32. Mas a coisa vai. Alguns de nós apostam em mudanças políticas e legais que tenham efeito multiplicador; outros apostam na revolta permanente contra os actos homofóbicos; outros apostam na cultura e na representação; outros ainda em formas mais íntimas de apoio mútuo. E todos, de certo modo, em tudo isto ao mesmo tempo. Face às várias repressões homofóbicas e face ao efeito de hegemonia sobre tantos LGBT.
33. Há dez anos que meia dúzia de nós saímos do armário, manifestando e festejando. Vivemos numa das regiões mais pobres, reprimidas e isoladas das Espanhas, é certo. Mas isso não é desculpa. Há sempre buracos no sistema. Há sempre efeitos paradoxais. Há sempre filões a explorar. A coisa vai devagar? "Depende": a coisa vai. A coisa tem de ir. Pela parte que me toca, não estou disposto a morrer em estado de vergonha e menoridade.

mva | 22:04|