OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


20.5.06  



Fortalezas

Depois das manifestações de imigrantes, Bush anunciou ao país novas leis da imigração. Surpreendeu à direita e à esquerda por ter tomado o caminho do meio, supostamente. Mas terá sido mesmo "do meio"? Na realidade, apenas recusou fazer aquilo que só mesmo um louco muito louco faria hoje em dia - impedir totalmente novas entradas e expulsar os "ilegais". O que de facto fez foi decidir que a Guarda Nacional irá reforçar a fronteira com o México, militarizando-a definitivamente. Dias depois, os conservadores do Senado vieram de novo propor a declaração do inglês como língua oficial do país.

É caso para perguntar: onde está o mirífico melting pot de que os neo-cons portugueses e europeus gostam tanto de falar, nas suas comparações constantes entre a Europa e os EUA? Foi pelo cano - o pot estava roto, afinal (pot = tacho; delicioso se usado para Portugal...). Mas a questão nem é essa - e as comparações são, neste caso, praticamente inúteis (a militarização da fronteira do México tem o seu equivalente europeu nos massacres nas fortalezas espanholas em Marrocos; e, simetricamente, a Europa tem uma história - só que mais antiga - de melting pot, assim como os EUA têm uma história de segregação absoluta por raça, e por aí fora até ao fim, perdão princípio, dos tempos...).

O que está em causa é praticamente o mesmo para os EUA e a Europa, e para qualquer parte do mundo incluíndo Portugal: as deslocações transnacionais de pessoas aumentaram exponencialmente, nos números e no ritmo. A famosa globalização não se coaduna bem com o estado-nação. E é flagrante a discrepância entre a circulação de mercadorias e capitais e a contenção da circulação de pessoas.

Mais: o estado-nação mostra as suas contradições e impotências: entre, por um lado, os direitos civis liberais, reservados aos cidadãos e nacionais e, por outro, os direitos humanos, definidos ao nível universal. Entre os dois estão as fronteiras que dividem cidadãos de não-cidadãos. Fronteiras que podem ser físicas e militarizadas e lugares de massacre, mas que também podem ser simbólicas, verificadas no momento em que o imigrante "ilegal", por não ser cidadão ou não ter "papéis", não pode aceder aos serviços sociais, aos direitos ou à voz na decisão sobre os destinos da comunidade onde está/é (ou das comunidades onde está/é).

Mas há mais. Hoje mesmo alguém dizia num orgão de informação aqui do burgo que "We're very heavily into the symbolic area in politics now". Really? Não estivemos sempre? E acrescentava: "não vai ser só a língua, mas também por exemplo o casamento gay". Quase em simultâneo, tinha lido no Público como os gurus da direita portuguesa sugerem a concentração da mesma nas questões "morais e de costumes" (é a versão salazarista da coisa; aqui deste lado chamam-lhe values), elecando... a imigração e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Vamos a isso. Vamos discutir fronteiras, simbólicas ou não (Jesus!: as fronteiras são o exemplo acabado de simbolismo, a não ser quando os loucos querem concretizá-las, como no Muro de Berlim, no Muro de Israel, ou no arame farpado da fronteira americana com o México). Não esqueçamos, porém, que "simbólico" não quer dizer "irreal" (há sofrimentos concretos na situação de migração ou na homofobia), e que "material" (vulgo "económico") não quer dizer não-simbólico - o dinheiro, o valor, a mercadorização (sobretudo de pessoas e do trabalho) são verdadeiros processos de significação, com verdadeiros efeitos sobre as vidas. É da mistura dos dois domínios (o "simbólico" e o "material", se, por conveniência, os aceitarmos como separados) que a imigração "fala".

mva | 00:27|