Dois dias em S. Miguel durante os quais não li jornais nem postei. Agora volto à confusão e o verde esvai-se.
A Gis foi morta
O assassinato da Gis constitui um verdadeiro drama social. Dá conta das muitas exclusões - e seu cruzamento - na nossa sociedade. E surge num período balizado simbolicamente pelo caso Casa Pia, por um lado, e pela discussão sobre a inclusão da homofobia no agravamento da pena para crimes de ódio, pelo outro; pelo meio, convém não esquecer o caso de Teresa e Helena, cujas vidas são marcadas por várias exclusões sociais para lá da recusa do estado em deixá-las casar.
A Gis era brasileira e tinha emigrado para Portugal. A Gis era transexual, identificando-se como mulher. A Gis prostituía-se. A Gis tinha o vírus do HIV e tuberculose. A Gis estava em situação de sem-abrigo. Há sem dúvida muitas vítimas de violência e mesmo assassinato por serem imigrantes ou de outra "raça". Há sem dúvida muitas vítimas por serem mulheres, e/ou por serem prostitutas. Há sem dúvida muitas vítimas por serem portadoras de HIV ou terem sida, como há muitas vítimas por serem sem-abrigo. Normalmente os criminosos ou defendem ideias de "purificação" da sociedade e ideários de ódio, e/ou são eles mesmos marginalizados, encontrando no ataque aos mais fracos ou aos que eles consideram "inferiores" as vítimas ideais. O que nunca há é crimes motivados por ódio à heterossexualidade ou à masculinidade, ou aos saudáveis, ou aos com-abrigo, que não sejam crimes motivados pelo roubo ou por razões passionais - por razões outras que não a estigmatização ou o preconceito. O ódio, como "ideologia", não como sentimento subjectivo apenas.
O país pergunta-se "como foi possível". E a motivação da pergunta reside num equívoco: como foi possível crianças (ou, na melhor das hipóteses, jovens) fazerem isto. A pergunta só é possível num mundo que cada vez mais angeliza as crianças e cada vez mais alarga a categoria "criança". A pergunta é idiota, sobretudo na ausência quase completa da outra pergunta: porque se mata uma pessoa na situação da Gis? A Gis já tinha sido votada a uma espécie de morte social por todos os mecanismos da exclusão e pelo desprezo do estado que nos representa a todos. Com requintes de malvadez, as "crianças" desferiram o golpe final - é aos lumpen que a sociedade da desigualdade vai recutar os seus carrascos, mostrando-lhes que na escala da exclusão ainda há quem esteja pior que eles.
O que o país deveria também perguntar-se é porque há tanta criança e tanto jovem em instituições de acolhimento; porque são essas instituições maioritariamente da Igreja Católica e não do estado; e que tipo de educação e valores são transmitidos nessas instituições. (Com certeza nessas instituições não se diz nada de mau sobre imigrantes e sem-abrigo. Mas aposto que, a julgar pelas posições oficiais da tutela, se diz muito de mau sobre homossexuais, travestis e transexuais).
O que o país deveria também perguntar-se é como é possível que uma pessoa com sida seja cuidada apenas por uma associação voluntária, obviamente com menos meios, e não pelo estado? Como é possível haver tanta gente em situação de sem-abrigo? Como é possível a prostituição ser exercida na mais elementar ausência de segurança para os e as trabalhadores/as sexuais?
Em vez disso, uma vez morta a Gis e detidos os jovens, vai começar a parvoeira. No espaço mediático e no campo político. Vão começar os apelos reaccionários às penas de prisão para pessoas abaixo dos 16 anos. Vão começar as tentativas de descartar os contornos homofóbicos e transfóbicos do crime*. Vão começar grandes solilóquios a la Pedro Strecht sobre "as crianças" e a sua "natural" ausência de culpa. Vão começar subtis e menos subtis culpabilizações da vítima.
A Gis foi morta. A única forma de tentar reparar a sua morte é combater as condições de exclusão em que tantas outras Gis se encontram. Pelas circunstâncias da imigração, da falta de tecto, do HIV, do trabalho sexual, da orientação sexual, e/ou da identidade de género. As "crianças" estão vivas. Não lhes desejo o castigo da prisão dos adultos, mas sim o castigo da reeducação. A única forma de tentar evitar que mais "crianças" façam coisas destas é apostar na acção social junto das famílias de origem, e em programas de acolhimento, inserção e educação fora do universo perverso da caridade dickensiana, classista e heterossexista.
A Gis não tinha nada para roubar; a Gis não tinha feito mal a nenhum dos seus carrascos; a Gis não tinha nenhum conflito pessoal com os seus carrascos. A Gis foi morta.
*Podem estabelecer-se, teórica e academicamente, infindáveis diferenças entre homofobia e transfobia. Mas, "no fim do dia", a transfobia pertence à homofobia, como dispositivo mais vasto e abrangente de estigmatização, preconceito e violência sobre orientações sexuais e identificações de género que não correspondam ao padrão heterossexista. Seja através do machismo de rua puro e duro, seja através das "subtilezas" da educação católica integrista, a masculinidade da rapaziada constroi-se sobretudo através de duas negações: a da feminilidade e a da homossexualidade. Imaginem o que isto não faz quando nas suas cabeças se pensa a figura da transexual.
PS: Vem aí um ataque. O caso da Gis vai ser "esvaziado" da sua componente homo/transfóbica; e vão aproveitar esse esvaziamento para impedir a atenção política à homofobia. O director do Público vai atacar o DN e Fernanda Câncio na Atlântico. Pacheco Pereira fez algo de semelhante hoje no seu blog - com a ingenuidade curiosa (mas certamente calculada) de referir o Bloco de Esquerda, pois sabe que se tornou num papão para os portugueses da cultura da aflição. Com certeza Espada ainda dirá alguma coisa (oh, oh) anti-liberal-mascarada-de-liberal, assim como o Expresso e a nova casta de cientistas sociais (em rigor, historiadores) conservadores, esse curioso oxímoro que prospera entre nós. Depois falem de lobbies, falem...