OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


26.1.06  



Relações, ralações

As relações afectivas entre as pessoas baseiam-se cada vez mais (como já Giddens tinha notado) na pura relação, isto é, na ideia da relação como válida em si e por si mesma, algo que só deve durar enquanto satisfizer ambas as partes, segundo os valores culturais contemporâneos do amor, da amizade, do sexo, etc. Eu acrescentaria que as relações devem também, segundo este modelo, basear-se no mútuo consentimento entre as partes. Elas assentam supostamente na escolha. Por fim, esse consentimento é cada vez mais visto como devendo ser informado, o que implica um conhecimento cada vez mais reflexivo sobre a natureza das relações (sobre o amor, sobre a amizade, sobre a sexualidade, etc.).

É claro que isto é uma "ficção". É uma história que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos. Mas, como dizia outro cientista social desta área (Weeks), é uma ficção necessária, isto é, faz parte do quadro ético em que nos orientamos. O que este tipo de modelo relacional, e a ficção necessária que o acompanha, fazem, é apresentar o inverso do parentesco e da família. As relações (de novo: amorosas, amistosas, sexuais, etc.), baseadas na "escolha", opõem-se às relações baseadas no "destino" (e no acaso - "não se escolhe os pais"), as relações com base no parentesco. Estas não são relações em si mesmas mas relações-na-estrutura (à falta de melhor expressão); não são de todo baseadas no mútuo consentimento (na escolha, desde logo); e não são informadas, pelo menos de modo igualitário (os pais podem ler manuais sobre educação, os filhos não têm manuais para perceber os pais e não os entenderiam mesmo que os tivessem).

A "escolha" também é uma ficção necessária. Ninguém escolhe verdadeiramente o seu parceiro ou parceira, por exemplo, já que o conhece dentro de um campo de relações sociais - em termos de classe, estatuto, etc - específico e em certa medida predeterminado. Mas poderia dizer-se o inverso em relação ao parentesco: se as relações começam como destino e acaso, desenvolvem-se também com alguma escolha, sendo as relações afectivas com parentes melhores entre certos indivíduos do que entre outros.

A relação amorosa é, por assim dizer, o nó disto tudo: porque se constrói com base numa ética próxima da amizade, por um lado; e porque dá azo a uma relação próxima do parentesco, já que um casal constitui uma família e, nalguns casos (hetero, férteis, e havendo vontade; ou adoptantes, sejam hetero ou homo, casais ou não, férteis ou não) institui parentesco com uma geração seguinte. Reconhecendo que a oposição entre a escolha e o destino é forçada, que as características da pura relação são contaminadas por determinismos sociais e que as do parentesco podem ter elementos de pura relação, ficamos em condições de divisar um "projecto" ético relacional para um futuro não muito distante. Este "projecto" junta cultura e política, porque parte do reconhecimento do possível (o que temos, o que há, os modelos culturais possíveis - e não a utopia) e a vontade ética de construir - através, por exemplo, da educação - uma vida melhor para mais gente.

Os seus traços seriam os seguintes, grosso modo: maior peso da relacionalidade, da escolha, do mútuo consentimento e da informação nas relações familiares e de parentesco - em suma, "democratização" da família, incluindo o valor da escolha de quais os indivíduos com quem se quer mesmo ter uma relação a partir da idade do consentimento; e maior peso de compromisso e responsabilidade nas relações amorosas, amistosas e sexuais, de cuja ligeireza e transitoriedade muita gente se queixa, e que existe em grande medida por causa do trauma de relações familiares e de parentesco sufocantes e esquizóides.

É claro que este "projecto" tem um tempo e um lugar (além de ser o produto selvagem da minha biografia...): o ocidente (whatever that means) e a modernidade, pelo que é desafiado quer pela alteridade cultural, quer pela fragmentação pós-moderna. Muitos outros modelos de relações de escolha e de acaso/destino existem, incluindo aqueles em que esta oposição nem faz sentido; e muitas dinâmicas da pós-modernidade já fizeram parte do trabalho que o projecto identifica. Mas se pensarmos em termos da nossa comunidade mais imediata (aquela onde vivemos grande parte do tempo, onde as nossas relações se estabelecem e em relação à qual temos/queremos ter voz) e das instituições que a regulam e/ou influenciam (escola, estado, igrejas, media, etc.), este projecto poderá ser uma via para combater ao mesmo tempo o reaccionarismo familista e o nihilismo hedonista.

Enfim: racionalizações depois de uma agradável e solta conversa sobre "O Futuro das Relações" ontem no É a Cultura, Estúpido!

mva | 11:13|