OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


10.1.06  

Porquê Cavaco?

1. Síndrome da vitória. Isto é assim como com o consumo ou as modas: se não tenho grandes critérios ou opções de fundo, alinho com o que me dizem que está a ganhar, com a "dinâmica de vitória". Prefiro estar entre os ganhadores; já me basta de ser loser.

2. País profundo. Paternalismo e patriarcado não são expressões vãs. São realidades vividas e incorporadas. Abram um livro de leitura dos tempos de Salazar e vejam: o Chefe de Estado é sempre o Pai da Nação; a Nação é apenas uma família grande. O Chefe de Família é austero, rígido, silencioso ("homem de poucas palavras"). A sua autoridade vem do silêncio. E quando fala, convem que fale de um conhecimento que os outros considerem técnico, complicado e, de preferência, que o ar dos tempos considere determinante. Convem ainda que a autoridade do Chefe não advenha da sua posição de classe: se for "humilde" na origem, tanto melhor.

3. Despolitização. Pessoas como Cavaco - ou como o Chefe da Nação, ou o Chefe de Família, ou o Grande Economista, ou o Professor - não são políticos. Políticos são outra coisa. Políticos são os tipos da retórica, do espectáculo do contraditório, das tiradas de tribuno, e das falcatruas descobertas pelos jornais. Não, ele não é um desses e é isso que o torna no mais bem sucedido... dos políticos.

4. Desideologização. Nas muito velhas e nas muito novas gerações (que aqui se juntam num verdadeiro pacto intergeracional), a visão do mundo não é organizada em torno da noção de conflito e interesses contraditórios, ou de direita e esquerda. Juntam-se, nesta aliança, uma coisa muito antiga e uma muito pós-moderna. A antiga é a ideia do consenso, do não-conflito, da harmonia, e que Salazar institucionalizou com o corporativismo (uma empresa é uma aliança patriótica entre trabalhadores e empresários, não um local de contradições), e que se alimenta ainda do horror ao debate próprio do Portugal profundo. A pós-moderna é a ideia de que o mundo não é legível com ideias, mas sim com um agregado caótico de práticas difusas, permitindo ser-se simultaneamente conservador numa coisa e progressista noutra; isto não é em si mau, só que no momento da escolha política é-se mais sensível à aura do que à análise. Nesse momento ou se escolhe o absolutamente novo do marketing (que a política portuguesa não oferece) ou o absolutamente antigo do caldo cultural (Cavaco).

5. A canibalização das posições. Uma das formas da direita se reorganizar é apresentando-se como verdadeiramente inovadora face a uma esquerda definida como conservadora e atávica. Canibaliza a ideia de mudança. Isso tem sido o truque dos esmagadoramente conservadores opinion makers nacionais. Verdade seja dita que a esquerda ajuda, nas suas práticas, a sustentar esta tese. Mas ela não deixa de ser contrabando, desonestidade intelectual no seu estado mais puro. O resultado é haver jovens que acham que Cavaco é de facto ar fresco (é assim como achar que um desodorizante para automóvel está de facto a fornecer ar fresco).

6. Nunca há só um culpado. Não, o problema não é a esquerda estar "desunida". A esquerda é desunida, e ainda bem. O problema radica no PS e na sua ausência quase absoluta de candidato: nem Mário Soares nem Manuel Alegre (este obviamente) surgiram a partir do PS e da sua vontade de combater Cavaco. Nada é infelizmente tão correcto como dizer que, para todos os efeitos práticos, Sócrates deseja Cavaco na presidência.

7. Não sabemos o que é um presidente. Como em Portugal o PR não é nem apenas simbólico nem verdadeiramente executivo, a mancha cinzenta que fica no meio permite todas as ocupações oportunistas. E permite dizer uma coisa e o seu contrário ao mesmo tempo. Ninguém sabe muito bem para o que vota e isso diminui não só o entusiasmo como a vontade de esclarecimento e definição. Ganha quem se colocar no centro do cinzento. Ganham os Cavacos. Cavaco é um okupa. Este problema do sistema agravou-se com a situação sui generis que tivemos: a campanha, com os debates nas TVs fez-se antes da campanha eleitoral, definindo a priori ganhadores e perdedores nas cabeças dos eleitores-consumidores.

8. Não há passado. Resultado de tudo isto: discutem-se pessoas do passado como prováveis presidentes do futuro próximo. Tal só é possível através da mais extraordinária limpeza do... passado. Mas essa é uma das características mais conseguidas do ethos português, da sua política e, curiosamente, uma das maiores características da leviandade pós-moderna. O fenómeno Cavaco é um curioso caso de aliança entre o ancien régime e a pós-modernidade. Perde a modernidade, aquela que tinha como uma das suas características a representação da política em esquerda/direita. E perde aquela esquerda que não soube ainda como avançar com uma agenda progressista em condições de pós-modernidade.

mva | 11:49|