OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


23.11.05  

O lobby do Vaticano

Confesso que me espanta a excitação que tomou hoje conta dos media portugueses a propósito de mais uma declaração homofóbica do Vaticano. Ele é Fórum da TSF, primeiras páginas das edições online dos jornais e, mais logo, um Opinião Pública da SIC-Notícias. Não compreendo porque é dado mais destaque a um assunto duma igreja do que a assuntos que nós, enquanto cidadãos duma república democrática, dum estado de direito e laico, podemos efectivamente resolver. Explico-me: enquanto república podemos de facto tomar decisões no sentido de mais (ou menos) igualdade, alargando (ou restringindo) todos os direitos a toda a gente; mas já não o podemos fazer em relação aos preceitos internos duma organização religiosa (ainda que eu ache que há limites: como é possível uma organização religiosa ir contra a Constituição? Não é por isso mesmo que não se admitem organizações que promovam, na base de preceitos religiosos, a mutilação genital feminina?).

O resultado disto é que se dá mais atenção a um comunicado homofóbico do Vaticano, do que a uma proposta concreta de evolução da nossa democracia, como o foi a discussão há dias do alargamento do casamento civil a pessoas do mesmo sexo. Só resta a esperança de tanta atenção à ICAR poder resultar em denúncia das suas atitudes retrógradas.

É claro que não sou ingénuo: a maioria dos portugueses dizem-se católicos; e a ICAR tem efectiva influência sobre as mentalidades. Mas é preciso cuidado: não tornemos isso numa self-fulfilling prophecy, em que de repente contribuimos para a ICAR ter ainda mais influência, para mais legitimando-a (como se a ICAR fosse uma sede de decisão em relação aos direitos. Não é. O estado de direito sim).

A palavra lobby - que Carreira das Neves usou hoje para se referir aos gays - anda a ser mal usada em Portugal. Lobby é simplesmente "grupo de pressão". Existem lobbies absolutamente legais e assumidos nos Estados Unidos e, sim, em Bruxelas. O verdadeiro lobby gay em Portugal são associações, perfeitamente legais, que defendem os direitos de gays e lésbicas perante uma sociedade que @s discrimina. Tem a influência que tem (pouca), marcada pela desvantagem de representar uma minoria. A ICAR é igualmente um lobby - e também legal, graças à liberdade religiosa que todos defendemos - só que infinitamente mais poderoso (pela História, pelos recursos e pelo número de "sócios"), com a característica de, no respeitante aos assuntos em causa, promover sistematicamente a limitação e repressão de direito e liberdades - desde logo das mulheres e dos gays e lésbicas.

As reivindicações e propostas do movimento gay e lésbico respeitam ao universo civil e não ao religioso. Pretendem acrescentar liberdades e direitos e não cerceá-los; pretendem dignificar mais gente, sem retirar dignidade a ninguém. As reacções da ICAR, pelo contrário (e mesmo que tecnicamente as suas decisões se apliquem só à sua organização) vão no sentido da repressão e do cerceamento de liberdades e direitos. Pretendem manter muita gente na indignidade e promovem essa indignidade. Será que não dá para entender isto?

mva | 12:23|