OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


7.11.05  

Cultura, multiculturalismo e outras palavras perigosas.

Pelas razões mais diversas, tornou-se comum nos últimos tempos fazer do "multiculturalismo" o bombo da festa. Como por acaso até dirijo um curso de mestrado em antropologia com a designação temática "Multiculturalismo e Identidades", talvez convenha explicar brevemente onde me posiciono. Para mim, "multiculturalismo" não é um programa ou projecto político (é-o para outros, claro). Vejo o-que-cabe-debaixo-da-designação de "multiculturalismo" como um "facto". Um facto da realidade social que merece ser estudado e que inclui, logicamente, as representações sobre... multiculturalismo. Esse facto tem muitas variações e nuances, normalmente ligadas às diferentes histórias de estados-nação, experiências coloniais e situações migratórias. É esta variedade e variação que permite um estudo antropológico comparativo. O "facto multicultural" pode resumir-se, de forma algo simplista, a isto: as sociedades euro-americanas (e já não só) funcionam na base dum conceito antropológico de cultura que dá azo a ideias de... multiculturalismo, isto é, várias culturas convivendo (bem ou mal) num determinado espaço e tempo. Acontece que esse conceito de cultura é errado. É um conceito que define a cultura como um objecto (uma "coisa"), propriedade de uma população, normalmente vista como uma extensa parentela, supostamente ancorada num tempo longo, idealmente ligada a um território e com aspirações de autonomia política unicultural.

Não se percebe a factualidade do "multiculturalismo" sem se perceber a construção política e ideológica do conceito de "cultura" que lhe subjaz. E não se pode propor nenhuma forma de cosmopolitismo, de diversidade, de igualdade de direitos e de respeito pelo indivíduo se se deitar fora, por wishful thinking, a realidade contemporânea de as sociedades se organizarem em torno daquela noção de cultura. Temos que propor - e demonstrar, pela etnografia e pela teoria - que "cultura" é, sim, um processo, uma negociação, um conflito em torno dos significados que orientam vidas colectivas; só assim se pode ter as bases para despoletar uma política da liberdade e da igualdade que, entre outras coisas, deverá ter como efeito a libertação (estranha palavra, bem sei) das pessoas das amarras da cultura-enquanto-hegemonia.

Para mais qualque coisinha, acho que isto até se lê bem.

PS soberbo: é claro que as coisas de "cultura" dizem respeito a todos nós e estão imbricadas na política. Mas não deixa de ser curioso o à vontade com que muitos mediáticos emitem juízos ligeiros sobre estes assuntos, ao passo que correm em busca de especialistas se tiverem que escrever sobre o genoma humano ou a tectónica das placas.

mva | 11:33|