OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


2.9.05  

Katrina ou a ecologia política.

Um furacão, como um tsunami ou um terramoto, é aquilo a que as seguradoras estado-unidenses chamam "um acto de Deus". Mas do mesmo modo que já não se pode falar em "natureza" humana sem ambiente e cultura, tão-pouco se pode falar em "Natureza" sem política. Os desastres naturais e os problemas ecológicos não existem per se - existem sempre em conjugação com a maneira como organizamos a vida colectiva, como prevemos ou não os desastres e como reagimos a eles. A catástrofe de New Orleans está aí para o demonstrar. Poderíamos falar do problema que é deixar crescer uma metrópole abaixo do nível do mar numa zona de tempestades tropicais; poderíamos falar de como esse crescimento se deve à importância da exploração de petróleo na zona e à nossa dependência dum combustível que vai acabar; poderíamos falar de como o planeamento, competência do Estado, cede sistematicamente à especulação. Mas a catástrofe de NO mostra duas coisas mais. A primeira - e nisto as catástrofes são autênticas fotografias em revelação - é a desigualdade: revela a pobreza urbana que grassa nos EUA e, historicamente, no Sul, e as pessoas que ficaram na cidade e que agora estão no desespero total são esmagadoramente negras (e não só por terem enorme peso demográfico no Louisiana). A catástrofe revela a justaposição entre pobreza e "raça" nos EUA. A segunda é a impotência, a incompetência e o desprezo do Estado ultraliberal, capaz de mobilizar tropa, armamento e tecnologia para o Iraque e incapaz, lento e negligente na ajuda às vítimas. Justamente o Estado que diz - a la Bush - que deve ser fraco e pouco interveniente, a não ser na protecção da segurança e propriedade dos cidadãos. Nem disto foi capaz.

Katrina pode ter sido, no seu momento inicial e inevitável, um "acto de Deus". A partir do momento em que o primeiro telhado voa, o primeiro dique desaba, a primeira pessoa aflita não é recolhida, e o primeiro bandido rouba uma loja, passa a ser uma questõ de ecologia política. Agora substitua-se furacão por terramoto; e EUA por Portugal. Que cenário podemos imaginar?

PS: Porque tenho a sensação que demorou muito tempo até que os media dessem relevo ao que está a passar-se em NO? Porque não havia imagens. E porque toda a gente estava convencida de que nos EUA tudo se resolveria numa questão de horas. Agora já se percebeu que nos próximos dias e semanas vai jogar-se ali uma guerra - humana e política - da mesma ordem que a do Iraque.

mva | 12:14|