OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


24.9.05  

A esperança muçulmana.



Reading Lolita in Tehran, da iraniana Azar Nafisi é mais do que um livro sobre a "condição da mulher" no Irão dos aiatolas. É um livro sobre a literatura, as janelas que ela abre, o espaço de respiração que permite. Nafisi vive agora nos EUA, onde é professora de literatura. No Irão passou pelo terror que foi ver a sua vida - e a de toda a gente - reduzida à fantasia de mundo perfeito de uns quantos fanáticos religiosos. É o que acontece quando se tenta transformar utopias em realidades. (Em rigor, é o que acontece quando se tem utopias...). Numa das passagens do livro fiquei boquiaberto perante uma possibilidade que nunca me tinha ocorrido: as jovens iranianas que, em vez de lamentarem a terrível vida das suas mães, invejam-na. Jovens com sede de passado - um passado sem tchador imposto, controlo e humilhações, para não mencionar o pior. O livro, traduzido em português, é simplesmente brilhante, estruturado segundo os autores e livros anglo-saxónicos que Nafisi ia lendo em sua casa com algumas das suas alunas, em autênticas reuniões de clandestinidade.

A propósito deste horrores, a voz mais séria e respeitável continua a ser a de um dos meus poucos heróis - Salman Rushdie (fica ali ao lado, mesmo que um bocadinho abaixo, do Nelson Mandela). Vale a pena lê-lo no DN de 24 de Setembro:

«O islão reformado rejeitaria o dogmatismo conservador e aceitaria, entre outras coisas, que as mulheres são totalmente iguais aos homens e que as pessoas de outras religiões, e sem religião, não são inferiores aos muçulmanos. Perceberia que as diferenças de orientação sexual não devem ser condenadas mas sim aceites como aspectos da natureza humana e que o anti-semitismo não é correcto. Rejeitaria a repressão da liberdade de expressão por parte da ideologia limitada da "ofensa" facilmente sentida e subtituí-la-ia pelo debate genuíno, robusto, em que tudo tem valor e no qual não há ideias proibidas nem áreas interditas.»

Com gente como Nafisi e Rushdie (ou os amigos muçulmanos que fui fazendo ao longo da vida, todos anti-fundamentalistas) a esperança não morre. E com eles não precisamos de aceitar os discursos islamófobos do novo newspeak ocidental.

mva | 12:26|