OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


24.8.05  

Fogo que arde sem se ver.

Um dos "clássicos" portugueses (e do Sul da Europa e América Latina em geral) é a queixa das elites letradas da esquerda "estrangeirada" sobre a inviabilidade do país (mea culpa também...). Mas o fenómeno engraçado a que assistimos agora é à apropriação deste tema pelos neo-conservadores que tomaram conta do sistema mediático. Se para a esquerda comentadeira os culpados da situação eram as elites económicas, a Igreja, o capitalismo ou outro papão mais ou menos simplificado, para a direita comentadeira os culpados são as próprias vítimas. Isso nota-se nas queixas sobre a falta de produtividade (forma elegante de dizer que os trabalhadores são maus), sobre o gigantismo da administração pública (forma elegante de dizer que não é preciso função pública), sobre os horrores do multiculturalismo e da imigração, etc. Tudo isto poderia ser considerado desprezável como apenas um caso de disputa direita-esquerda, sem mais consequências. Mas não é assim. Estes neo-queixosos fazem o seu trabalho num contexto novo, marcado pela crise económica, pela corrupção (nos vários sentidos da palavra) do sistema político e pelo clima (anti)terrorista. Assim, a sua queixa traz escondida uma proposta de saída para a crise - privatização extrema, fim de direitos laborais, retoma de "valores" conservadores na educação, na sexualidade, no patriotismo, you name it. Passadas para o plano estritamente político, estas propostas introduzem uma dúvida corrosiva: será que vale a pena a democracia? A história dos conservadores à portuguesa é a mesma há dezenas e dezenas de anos: blame the victim, viver à conta do Estado que se ataca sistematicamente, viver de especulação e, quando as coisas apertam socialmente, pedir aos grunhos de serviço que exerçam autoridade e punho de ferro.

(Perante tudo isto a esquerda encontra-se na pior situação possível: a de mera guardiã das "conquistas" democráticas e sociais do passado. Por isso a esquerda parece agora tão "conservadora" e a direita parece tão iconoclasta e revolucionária - exactamente como aconteceu com os fascismos na primeira metade do século XX.)

É também por isso que podem dormir tranquilamente enquanto um país inteiro arde: não se fez já lucro suficiente com n estádios de futebol em vez de aviões de combate a fogos? Não se gastou/fez já dinheiro suficiente com material militar que não serve para combater fogos (Paulo Portas, o Encoberto, dormita tranquilamente nos States preparando o regresso messiânico...)? "Deixai-os arder": torna-os mais desejosos de uma mão de ferro que "ponha ordem nisto" - afinal a única coisa para que serve o Estado no ideário conservador.

PS. Coisas boas (haja deuses!): recebi um mail de um dos casais que entrevistei em Barcelona durante a pesquisa sobre o casamento - as moças vão casar-se em Outubro. Felicitats!

mva | 13:07|