OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


9.5.05  

Socialismo(s).


Foi giro ter sido incluído, pelo semanário Expresso, no grupo da "ala direita" do Bloco. Eu próprio fiz essa blague há anos, quando numa convenção disse que era da ala direita do Bloco, mas que ser a direita da esquerda não era o mesmo que ser a esquerda da direita. Mas foi giro porque o Expresso lá teve que reconhecer a pluralidade do Bloco. E este fim-de-semana a Convenção demonstrou que se leva a sério a pluralidade, o direito de tendência, a democracia interna e a divulgação de informação. Com falhas? Com defeitos? Sem dúvida. Mas tudo começa pelas intenções quando elas se baseiam em princípios e estes se inscrevem claramente nos estatutos.

O Bloco tem agora mais poder. E eu creio piamente no princípio de que o poder implica responsabilidade. E o primeiro princípio da responsabilidade é a honestidade nos propósitos. O Bloco definiu-se, além de democrático e plural, como ecologista, feminista, anti-capitalista e socialista. Estas duas últimas expressões, por causa dos tempos que correm e da história dos últimos cem anos, são obviamente complicadas. Passo a explicar.

Há tempos recusei a designação de "socialista" para o Bloco. E nunca percebi bem o que está por trás da expressão "anti-capitalista". Comecemos pela última. No meu entender (e acho que deverá haver pluralidade interpretativa também), "anti-capitalista" significa criticar radicalmente o capitalismo tal como existe, isto é, o sistema neo-liberal vigente, avesso à regulação, promotor de formas de exploração que, por serem globalizadas, tornam ainda mais difícil a dita regulação e, inclusive, fazem a humanidade recuar nos direitos conquistados; significa também criticar radicalmente uma cultura capitalista baseada apenas no consumismo e no hedonismo. Nada disto significa deitar fora a noção abstracta de mercado (haverá sempre mercado, mesmo num hipotético regime socialista), mas sim recusar O Mercado; nada disto significa recusar o prazer das coisas ou o prazer da vida (bem pelo contrário), mas sim criticar a mercantilização de tudo e o imediatismo dos prazeres. Já questões "de fundamento" (que me parecem mais fundamentalistas que outra coisa) como a abolição da propriedade privada, parecem-me tão puristas e irrealistas (e mesmo desnecessárias) como a exigência purista cristã do celibato total como única forma coerente de evitar o pecado...

Isto liga-se ao que me ocorre dizer sobre a segunda "grande palavra", socialismo. Aceito-a agora de bom grado, desde que explicada e adjectivada, pois não vejo o socialismo como uma Coisa, um Regime ou algo que possa ser decretado; não vejo o socialismo como sinónimo de uma utopia, um céu a atingir, um final dos tempos e da História. Vejo o socialismo como o nome que se convenciona atribuir ao processo, ao movimento de acumulação de processos emancipatórios diversificados. "Socialismo" pode ser o nome do chapéu de chuva de todas as lutas progressistas contra o predomínio dos modos capitalistas de organizar a economia e a sociedade; contra o neo-liberalismo; e contra a cultura capitalista da alienação. Em rigor, a minha perspectiva é social-democrata, no sentido antigo da expressão e o Socialismo é um ponto-de-fuga, como na perspectiva de um desenho, mais do que um destino. Um partido, como o Bloco, é um movimento: nele confluem pessoas preocupadas com as condições concretas das suas vidas e da sua sociedade, em muitos planos diferentes da experiência e das identidades; discutem o que as une e o que as desune e traçam projectos e acções necessariamente transitórios; e não estarão unidas para sempre. Porque não há - porque não deve haver - Um
Objectivo, Um Modelo, Um Regime (Uma Coisa...) pré-definida a atingir. É sobretudo isso que me separa de algumas pessoas e grupos cujo dogmatismo e normatividade me dá urticária.

Para as pessoas mais velhas do que eu, as que foram adultos na ditadura, a palavra "socialismo" tem uma conotação relacionada com as utopias e os programas ideológicos de cartilha - e o gosto desagradável (ou a saudade) próprios das desilusões; para a minha geração, que já assistiu à débacle do "socialismo real" (expressão tão risível como o seria dizer que a ideologia do Vaticano corresponde ao cristianismo original....) do Leste, das revoluções "festivas" da América Latina e das "libertações" africanas, a palavra cheirou durante muito tempo a sacristia, a partidão e a dogmatismo; para as gerações da democracia é simultaneamente uma palavra assustadora e ignorada (ou porque uma espécie de consenso capitalista se estabeleceu, reflectindo-se numa educação que transmite a mensagem da equivalência entre capitalismo e "estado natural da humanidade"), ou pela simples incapacidade dos socialistas transmitirem a sua mensagem. Dos socialistas: o plural importa.

Não há, a meu ver, um ser socialista ou sequer um devir socialista. Há um estar, um ir sendo e, sobretudo, um ir fazendo socialista. Por isso aquilo que defenderei no Bloco será a crítica feroz dos dogmatismos para-religiosos da extrema-esquerda, das normatividades anquilosadas à PC, e dos medos e fraquezas que levam ao esvaziamento do movimento socialista no PS.

Visto a camisola do socialismo. Sabendo que a posso lavar e que novas camisolas, com novos desenhos, podem sempre ser compradas.

mva | 17:20|