OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


20.5.05  

Sob as pedras da calçada,... nada.

«Inconformismo. Contra a cultura dominante e o politicamente correcto». Esta frase faz parte do estatuto editorial da revista Atlântico, dirigida por Helena Matos.

Numa simples frase estão contidas três afirmações que fazem parte do que se poderia chamar a estratégia publicitária dos sectores neo-conservadores: passar a mensagem de que a rebeldia está mais "à direita" do que "à esquerda"; de que a "esquerda" domina a cultura; e que esta é hipócrita, isto é, politicamente correcta.

Convenhamos que há razões para esta mensagem medrar pelas mentes afora: o modelo social europeu está em crise, permitindo assim apresentar a esquerda como "conservadora do que há" e o (neo)liberalismo como algo que rompe com o pântano; a esquerda ainda domina a área cultural mais prestigiada, assumindo por vezes uma atitude snob face a tudo o resto; e há uma relativa punição social da intolerância que em certa medida apela ao que pode parecer hipocrisia na correcção política.

No entanto, será mesmo assim? Até que ponto? Com que gravidade, comparando com outros defeitos das tendências políticas e culturais actuais? Vejamos. O programa (neo)liberal começa por ser contraditório: ele é, no plano das liberdades, um ataque à herança do liberalismo, perfeitamente reclamável pela esquerda. Não há nada de rebelde e inconformista em propor uma revolução no contrato social e das nações (porque as propostas centram-se especialmente no domínio laboral e das questões de segurança) que, em rigor, pretende fazer recuar as nossas sociedades para o laissez faire dos inícios do século XX.

Quanto ao segundo aspecto, o domínio da Cultura pela "esquerda" é infinitamente menos eficaz na condução das mentalidades do que o domínio dum capitalismo do enlatado em tudo o que é televisão, cinema, jornais de escândalos, ou publicidade - os domínios verdadeiramente influenciadores do sentido de vida (ou lack thereof) das pessoas. Mas mesmo se atentarmos a áreas mais "sérias" da produção de sentido, como os jornais de referência, pode em rigor dizer-se que são dominados pela "esquerda"? De todo, e há já bastante tempo, se lermos os editoriais quer do Público quer do Diário de Notícias.

Por fim, o "politicamente correcto". Já percebi que, nos últimos anos, a expressão deixou de ter o seu sentido original. Ela significava a vontade de mudar a linguagem como campo de expressão e reprodução de desigualdades e exclusões. Hoje o pc é percepcionado como sinónimo de hipocrisia. Mais: o seu sentido expandiu-se para referir também "agir (e falar) de acordo com as conveniências", sem ferir ninguém, sem levantar ondas. Curioso processo: passou a significar justamente a hipocrisia burguesa, os bons-costumes, que a "esquerda" identificava na "direita". Pessoalmente continuo a defender com unhas e dentes as virtudes do projecto da correcção política, sabendo que ele tem uma área específica de aplicação: a "fala" das instituições - da Lei, do Estado, da Escola, etc - que têm a obrigação de promover a igualdade, mesmo sabendo nós que isso não corresponde à instituição da mesma. O pc não tem a ver com paninhos quentes e boa educação: tem a ver com o desejo de igualdade e o reconhecimento de que a linguagem muda a percepção do mundo. Mas há mais: o projecto de ataque ao "politicamente correcto" (projecto que está a ser bem sucedido) pretende denegrir sobretudo as propostas de igualdade no campo identitário ("racial", de género, sexual, etc). Quando oiço alguém reinvindicar o "direito" de me contar uma anedota homofóbica ou racista, acusando-me de falta de sentido de humor (!) por não gostar do facto, só consigo ver que aquela pessoa não quer mesmo que eu tenha os mesmos direitos que ela - ela que está no centro da hegemonia, ao mesmo tempo que se vê como inconformista.

Que se verifica, então, nesta tripla cambalhota linguística da "direita" - agora rebelde («inconformista»), contra-cultural e anti-hipócrita (meus deuses, dir-se-ia que saíram todos do Maio de 68. Oops: saíram mesmo...)? O velho truque da inversão, que se consegue graças à polissemia das palavras. Mas é um truque, e desonesto enquanto tal. A prova dos nove é saber se aquilo que a "nova direita" propõe conduzirá a uma sociedade menos conformista, mais diversa culturalmente e promotora da igualdade. Não me parece nada que seja esse o caso.

mva | 13:23|