OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


12.5.05  

No fascinante mundo do subtexto.

A declaração de inconstitucionalidade do artº 175 do Código Penal deu azo a várias asneiras. De alguns jornais e comentadores, para todos os efeitos sociológicos gente altamente (cof, cof) escolarizada e letrada. A confusão constante entre consentimento e abuso ou entre criança, adolescente e menor e a ligação a casos concretos (como o processo de "pedofilia" dos Açores ou o do cidadão inglês) revelam o estado das coisas: o problema de muita gente é a homossexualidade, sempre associada a desvio, agressão, trauma. As interpretações erradas do 175 e do significado da sua inconstitucionalidade acontecem porque os intérpretes interpretam (o.k....) na presença da imagem mental dum homem lúbrico assaltando um rapazito - e nunca de um jovem de 16 anos atraído por um de 18, por exemplo. O subtexto é que a homossexualidade é intrinsecamente "má".

Miguel Portas subscreve a moção de censura a Barroso. Para o caso pouco importa o conteúdo da coisa: curioso, sim, é que isto se tornou notícia também por causa do subtexto. Se no caso do 175 o subtexto é o "desvio" homossexual", neste caso é o "antipatriotismo". Uma certa e generalizada patridiotice acha estranho que um eurodeputado português possa pôr em causa o Presidente da Comissão português. Coisa feia! Falta de educação! Anos e anos de "pactos de regime" entre PS e PSD em função do "interesse nacional" criaram uma cultura de "consenso" estupidificante e apolítico. (Que sirva ao menos para Guterres, o homem responsável pelo caos da questão do aborto, desaparecer de vez do mapa político).

Um jornalista do DN, Raul Vaz, escreve sobre a sua estranheza por o Bloco não ter comentado logo o caso BES/Nobre Guedes/PP, quando havia vociferado contra o caso Galp durante o governo anterior. Para ele isto seria um sinal de acomodação. É curioso ver a direita a exigir ao Bloco sinais de esquerda. Vaz esquece que no caso Galp denunciou-se o que estava a acontecer no governo; ao passo que o caso BES/etc resulta duma investigação (e não somos supostos "deixar a Justiça seguir o seu curso", como soi dizer-se no tuga legalês do consenso político?). Não fosse a minha suspeita de que o editor do DN - na sequência, aliás, da nova estratégia de definição de um nicho de mercado para aquele diário, já internacionalmente conhecida como a nitwit niche strategy fundada por Luís Delgado - é, digamos, intelectualmente desafiado, acharia revelador o subtexto: queremos um Bloco que ladra, não o queremos na nossa caravana.

Um funcionário da ICAR disse uma barbaridade sobre o assassínio duma criança. E disse outra barbaridade sobre fetos abortados, que ele vê como pessoas. Meio mundo gritou "escândalo" em relação à primeira afirmação; ninguém tugiu sobre a segunda. O subtexto, tanto mais perturbador quanto aparentemente inconsciente é que meio mundo, incluindo muitos dos tais escolarizados da mídia, acha que um feto é uma pessoa e o aborto um assassínio.

mva | 22:36|