OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


24.5.05  

A contrapelo.

"Défice, défice, défice" (tão banalizado que até já se grafa em português, e não deficit); "Apertar o cinto"; "Sacrifícios"; "Vacas magras"; "Recessão". E as receitas, repetidas ao infinito pelos mesmos comentadores e economistas de sempre (e que não são o único tipo de economista que existe...), são sempre as mesmas: "Um país é como uma casa"; "Há que aumentar as receitas e reduzir as despesas"; "Não se pode viver acima das possibilidades". Dividem-se apenas no maior peso dado ao aumento da receita ou à diminuição da despesa. É assim como se a economia fosse a política americana: democrata ou republicano? (what a choice!)

São correctas as avaliações do estado das coisas? Sim, até certo ponto. Algum de nós duvida que o Estado é gordo demais e que largos sectores da Função Pública são incompetentes? (e algum de nós duvida que o empresariado português vive à conta do Estado e é incompetente, já agora?). Mas em larga medida a avaliação do descalabro nacional parece consensual porque se baseia em afirmações aparentemente de bom-senso. Dum bom-senso que chega a raiar a banalidade.

E no entanto.... No entanto, quem as profere, os tais comentadores e economistas de sempre, profere-as há... bem..., desde que me lembro. Muitos deles passaram por sucessivos governos. Porque não se materializaram os bons-sensos e as banalidades em medidas com resultados? Em suma, porque não resultou o que sempre propuseram e vão com certeza propor outra vez?

A primeira resposta possível é que há tanta resistência à aplicação do bom-senso banal que nunca se consegue alcançar o que se propõe: o "Estado gordo", "o peso da administração pública", o "conservadorismo dos sindicatos", a Função Pública como "partido", etc. Como disse, é difícil negar que a administação pública é pesada, que o Estado é gordo, que há desperdício, gente a mais e, ainda por cima, ineficácia. Como não se pode negar que há imensa fuga e evasão fiscais.

Mas a segunda resposta raramente é dada: que tanto as formulações do bom-senso banal como a avaliação da situação possam estar... erradas. Que, além do manifesto excesso de gente a não fazer nada, possa haver gente mal colocada, capacidades desaproveitadas; que possa haver orçamentações simplesmente mal feitas ou feitas com propósitos de manipulação política; que, além de fuga e evasão fiscais, possa haver (há...) bancos, empresas e, em suma, gente, que nem sequer cai na categoria de fuga ou evasão fiscal porque simplesmente está isenta de pagar ou usufrui de descontos imorais; que possa haver (há...) sigilo bancário e fiscal maior até que nos EUA; que possa haver offshores, sei lá, na Madeira (há...). Já para não falar do pormenor de estarmos sujeitos a um idiota pacto de estabilidade...

Nenhuma destas considerações tem sido pesada pelas análises dos comentadores e economistas que, em última instância (via TV ou via Ministérios das Finanças e da Economia) nos têm governado nas últimas décadas. Como não acredito que sejam fracos de cabeça, só me resta concluir que não querem, politicamente, pesá-las.

Pensar a contrapelo é o primeiro gesto dum pensamento crítico. É pegar nas afirmações, sobretudo nas do bom-senso banal (regra nº 1: desconfiar sempre do bom-senso e da banalidade), e questionar as coisas mesmas que ele pressupõe. E o pensamento crítico é o primeiro passo para o exercício da política numa democracia que se pretenda justa. Nela, as decisões sobre a qualidade e a quantidade de Estado, sobre a natureza e a justiça dos impostos, sobre o que se orçamenta e como se orçamenta, devem ser decisões com projecto político - nunca as banalidades, recheadas de metáforas de vacas e cintos, da administração de uma economia doméstica. Esta era a metáfora do Salazar, caso não se lembrem.

mva | 17:39|