OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


22.4.05  

Ruído na comunicação.

Ontem enviei por e-mail um comentário aos casamentos em Espanha, em resposta ao pedido duma jornalista. Para que notem a diferença entre o que se diz e o que se publica (não há nisto acrimónia, simplesmente desejo de esclarecer), leiam a peça:

«"Poucas esperanças" em Portugal

Miguel Vale de Almeida, defensor dos direitos dos gays e lésbicas, considera haver "poucas esperanças" de que a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo pelo Parlamento espanhol se reproduza em Portugal devido às diferenças entre o PS e o PSOE (partido socialista espanhol). "O PS está refém de um "centrismo" que me parece mais baseado num fantasma do que numa realidade. O fantasma é que a sociedade portuguesa não estaria "preparada"", diz Miguel Vale de Almeida, antropólogo e investigador na área do género e da sexualidade, em resposta por e-mail a um contacto do PÚBLICO. Pelo contrário, argumenta, o PSOE percebeu que a sociedade precisava de enfrentar "os sectores conservadores, apoiados pela hierarquia da Igreja". O activista do LGBT, movimento contra a discriminação fundada na orientação sexual, sublinha também a diferença entre os movimentos gay e lésbico dos dois países - fraco em Portugal e forte em Espanha. No caso português, a questão do casamento homossexual depende também da modernização do PS - "que muito tem a aprender com o seu congénere espanhol", afirma. S.R»...,

...o meu comentário, enviado por mail, e no qual se baseia a peça:

«As diferenças entre o PS e o PSOE não auguram grandes esperanças neste campo. O PS está refém de um "centrismo" que me parece mais baseado num fantasma do que numa realidade. O fantasma é o de que a sociedade portuguesa não estaria "preparada"; este fantasma revela também dois medos: o da Igreja Católica e da sua influência, e o da perda de votos nos sectores do "centro". Mas há que olhar para a experiência espanhola. O PSOE de Zapatero propôs esta lei por duas razões. A primeira tem a ver com o facto de o movimento gay e lésbico ser forte em Espanha e ter pugnado pela igualdade de direitos na lei, incluindo o casamento; a segunda tem a ver com a percepção política de que a sociedade espanhola precisava de um enfrentamento com os sectores conservadores, apoiados pela hierarquia da Igreja. A estratégia demonstrou ser acertada: criar um "élan" de democratização, de defesa da igualdade e dos direitos civis. Não é por acaso que mais de 60% dos espanhóis se declaram favoráveis a esta lei. Em Portugal o movimento gay e lésbico é mais fraco, como o são todos os movimentos sociais. Mas tem crescido imenso e já inclui o direito ao casamento como uma das suas reivindicações prioritárias (sobre este aspecto sugiro contacto com a Associação ILGA-Portugal, mais do que com a Opus Gay...). No plano político só o Bloco de Esquerda e a Juventude Socialista falam claramente em casamento. O PS, além das razões apontadas acima, ficou refém de uma campanha eleitoral suja, baseada em argumentos homofóbicos lançados por Santana Lopes e que não foram clara e taxativamente combatidos pelo PS. Como? Dizendo claramente que uma sociedade democrática é uma sociedade de igualdade de direitos e de plena dignidade das pessoas; e propondo a alteração do Código Civil da forma que se fez em Espanha - deixando de referir o sexo dos cônjuges. Em Portugal muito depende da força e argumentação do movimento gay e lésbico; mas também da modernização do PS - que muito tem a aprender com o seu congénere espanhol. Oxalá a celebrada eleição de Espanha como parceiro privilegiado (feita por Sócrates na sua visita oficial) contamine o PS de modernidade. Do que menos precisamos é de soluções de segunda, como uma "melhoria" das uniões de facto; ou de argumentos baseados no medo e na homofobia oculta, como o receio do direito à adopção como consequência da igualdade no casamento.»...

...e a Carta ao Director que enviei hoje:

«A peça publicada a 22 de Abril com o título "'Poucas esperanças' em Portugal' - que cita comentários meus à legalização dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo em Espanha - contém algumas interpretações erróneas. Desde logo, o título empola os aspectos negativos e deixa-os descontextualizados: como o artigo diz, e bem, tenho pouca esperança no PS, mas tal não significa que não tenha esperança no movimento LGBT. A peça apenas refere que eu disse que o movimento LGBT português é fraco e o espanhol forte. Acontece que no texto que enviei por e-mail essa afirmação estava devidamente contextualizada: "Em Portugal o movimento gay e lésbico é mais fraco, como o são todos os movimentos sociais". O movimento LGBT português tem crescido muito; precisaria de ser mais ouvido pelos partidos políticos e de ter maior visibilidade nos media (o movimento espanhol realça sempre, aliás, a importância desses factores para o seu sucesso). A minha pouca esperança tem a ver com a esquerda portuguesa e não com o movimento LGBT, cuja tenacidade e abnegação admiro enormemente. O meu "negativismo" é outro: como é possível que numa democracia e num Estado de direito haja uma categoria de cidadãos e cidadãs que, em virtude do seu sexo, estejam impedidos de celebrar um contrato civil? O atraso histórico de Portugal em relação à Espanha em questões básicas de direitos civis envergonha-nos a todos como portugueses. E espanta-me que se perpetue quando o PS, ao contrário do seu congénere espanhol, dispõe de maioria absoluta....

PS: Outra correcção: "LGBT" significa "Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero"; não é o nome de nenhuma associação, ao contrário do que o artigo dá a entender.»

mva | 14:34|