OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


4.4.05  

Religare.

Não consigo, em rigor, usar as expressões "agnóstico" ou "ateu" para me descrever. A primeira soa um pouco máriosoarenta: deixa espaço para deus, retirando a confissão religiosa; a segunda soa demasiado a... uma religião, pois pressupõe algo contra o qual se posiciona, fazendo assim com que esse algo como que... exista. Só sei dizer que "a questão não se (me) põe" - a de deus, da vida ou não depois da morte, do sentido da vida, and so on.

Tive três situações de exposição à religião no sentido de "sentimento religioso" que me tiraram ligeiramente do alheamento em relação à "questão". A primeira foi aos dez, onze anos. Na escola preparatória que frequentei davam-nos os livros escolares todos juntos num saco no início do ano. Um deles era de Religião e Moral e tinha as mais fascinantes ilustrações: fogos, sacrifícios, violência, the works... Como os meus pais tinham pedido que eu não frequentasse aquelas aulas, fiquei com água na boca. Mas passou - a banda desenhada deu-me as mesmas emoções poéticas.

A segunda foi quando vivi aos 16, 17 anos, com a minha família judia americana. Como foi a primeira exposição que tive a práticas religiosas familiares, não só aprendi como interiorizei algumas coisas. Nada que se parecesse com fé, mas sim com simpatia. Passou, e hoje sei que foi uma experiência de empatia cultural (a minha primeira como "antropólogo", acho).

A terceira foi quando fiz pesquisa na Bahia e participei no Candomblé praticado pelos meus colaboradores de pesquisa e informantes. Entusiasmei-me tanto com formas como com conteúdos, assim como pelo carácter alternativo, resistente e mesmo desafiador daquela vivência religiosa. Hoje sei que foi sobretudo uma excitação emocional.

Não deserdo nem a poética, nem a empatia cultural, nem as emoções destas experiências. Mas a minha estrutura não podia deixá-las ser mais do que isso - experiências (que nem chegaram a ser experimentações). Que foram experiências religiosas, foram. O religioso é tudo aquilo - mais a parte chata, aquela com que nos revoltamos, do institucional, do impositivo, do repressivo, etc. É por revolta contra esta última parte que muita gente hoje experimenta apenas com a primeira - estão aí os vários new-ages para demonstrá-lo. Só que acontece comigo que não preciso dessa formatação. A experiência que alguns chamam de "religioso" (do re-ligare) tenho-a como todos: nas experiências poéticas, emocionais, sensoriais (e, sim, nas intelectuais) da vida. Sobretudo no sentimento amoroso (quantas vezes epifania), no sexo (quantas vezes possessão e êxtase) e na confiança naqueles de quem se gosta (quantas vezes fé).

mva | 22:49|