OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


20.4.05  

Mandela.



Sempre fui um leitor compulsivo. Sobretudo de ficção. Mas de há uns anos para cá o prazer começou a diminuir. Ao mesmo tempo comecei a interessar-me mais por histórias reais de gente real - talvez por influência da própria pesquisa antropológica. Só recentemente descobri o género da biografia e, sobretudo, da autobiografia. Pouco me importa que seja um género que releva das convenções sociais sobre o indivíduo - o que me atrai na autobiografia é justamente o contexto histórico e social, vivido por alguém de concreto.

Estou agora a ler, com enorme gosto, a autobiografia de um dos meus pouquíssimos heróis - Mandela. Agrada-me a honestidade e a candura do relato, sobretudo a forma como, nas primeiras 100 páginas, Mandela reflecte sobre os seus erros de juventude: indecisões, mentiras, hipocrisias, erros. Para um antropólogo, é fascinante o relato da sua fuga da terra natal para escapar a um casamento arranjado, cujo lobolo (compensação matrimonial ou "preço de noiva", na infeliz expressão antiga) já tinha sido pago. Para alguém com preocupações políticas, o livro ajuda a perceber como se constrói alguém "de jeito". Estamos demasiado habituados à imagem dos líderes libertadores que, depois, se transformam em bestas. Mandela é dos poucos a quem isso não aconteceu (é bem provável que Amílcar Cabral tivesse tido destino semelhante). E estamos infelizmente habituados a estereótipos sobre os líderes africanos (quando não há nada de intrinsecamente africano na "corrupção dos libertadores"; simplesmente os exemplos africanos são mais recentes no tempo...). Se bem que por razões diferentes, os Mugabes, os Eduardos dos Santos ou os Fidéis deste mundo devem corar quando ouvem o nome Mandela.

PS: Memória: quando nos finais dos setentas estava num grupo universitário americano que promoveu um boicote às cantinas que pertenciam a uma empresa com investimentos na África do Sul do apartheid, costumávamos ouvir a canção "Free Nelson Mandela". É a única canção de protesto que conheço ao som da qual se pode dançar...

mva | 20:43|