OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


18.4.05  

A água do banho.

É claro que a "cultura" (no sentido antropológico) está cheia até à borda de "coisas" religiosas; e é claro que a "religião" está cheia até à borda de sistematizações de práticas culturais. Muitas das nossas noções de intimidade, fidelidade, sexualidade, etc., ecoam as noções religiosas da sacralidade do corpo (o corpo como templo); assim como a "sagrada família" é isso mesmo - uma sistematização recente da família nuclear heterossexual e reprodutiva. Os exemplos são n. Mas justifica isto que a religião - sob a forma de uma confissão específica - tenha um lugar privilegiado na sociedade? Não. Porque "cultura" e "religião" não se ecoam mutuamente apenas, como alguns analistas menos dinâmicos tendem a sugerir. Porque a cultura é um processo e não uma instituição, ao passo que a religião tal como a conhecemos institucionaliza-se numa empresa multinacional; e a cultura, dinâmica que é, muda, ao passo que a religião-empresa tende a conservar-se. Mais: a religião-empresa tem uma marca, a da confissão religiosa; o seu equivalente cultural seria o tipo de nacionalismo tendencialmente racializado e xenófobo. No campo da cultura desejamos mais mistura e pluralidade (e ela acontece mesmo que não se queira...). É apenas legítimo que a sociedade e o Estado encarem a religião-empresa-confissão como uma variável cultural entre muitas. Mas para o fazer consequentemente tem que ter consciência que ela tem um peso excessivo e anti-dinâmico - um carácter quase monopolista, para não falar da publicidade enganosa. É por isso que a promoção da laicidade faz todo o sentido. É por isso que é deitar areia aos olhos das pessoas dizer que os pró-laicidade querem apagar a religião do espaço público ou apagar o seu conteúdo e presença culturais.

PS: Noutro plano, mais do privado: muitas pessoas, quando descobrem os ecos religiosos das suas éticas, crenças, práticas (reparem: digo "ecos", não "raízes") - como as atitudes perante o amor, as relações, o casamento, a fidelidade, o corpo, a sexualidade etc - pensam que a alternativa é deitar fora o bébé com a água do banho. Muita suposta libertação sexual mais radical vem desse corte. Normalmente não resulta em maior felicidade (e resulta bastas vezes em incoerências ou retrocessos...), porque o começar tudo de novo é uma espécie de impossibilidade cultural (dados os hábitos e incorporações). Sempre me pareceu mais interessante "resignificar" o que existe, em vez de decretar a utopia. Normalmente atitudes como a minha são classificadas como "perigosas" pelos reaccionários e como "reformistas" pelos progressistas... Mas isso é assunto para outros posts, que o assunto do casamento tem-me feito pensar nisso.

mva | 23:09|