OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


29.4.05  

Concurso. Entrada 2 (extra-concurso).


José Gil e o Nevoeiro dos media.

O tópico dos media, ou mais exactamente, dos telejornais generalistas, é abordado logo no momento inicial do livro de José Gil. Foi um aspecto que me interessou particularmente, visto que, a partir do momento em que comecei a assistir criticamente a estes paradigmas da transmissão de ?informação? em Portugal, tornei-me numa companhia insuportável entre as 20 e as 21 horas de cada dia. Hoje já não vejo estes telejornais. E era insuportável porque criticava peça a peça, quer seja pela falta de profissionalismo, pela abordagem sensasionalista ou pela falta de menção a temas importantes. A minha ingenuidade consistia em medir tudo isto a partir do princípio que os telejornais queriam fazer informação séria. Não querem. Isto tornava a minha critica fútil, que era ao mesmo tempo irritante por outra razão: ninguém quer saber.

Os telejornais funcionam segundo uma lógica de entretenimento, de agitação suave. Doutra forma, como nos poderia ser possível comer se nos confrontassemos realmente com as tragédias do mundo? Quando o assunto nos toca mais de perto, as peças apelam ao comentário de senso comum e de instinto primário. É a transformação do mundo em conversa de café. Como é dito no livro, o mundo noticioso dos ?directos? e dos ?enviados especiais? consegue colocar o espectador ?dentro do mundo mas ao mesmo tempo acima dele, como se o vivesse não vivendo.? É por isso que as grandes tragédias do mundo são sempre retratadas com um subtexto semântico de exótico, distante, ou quase de ficção científica. Como que a dizer: não se preocupe, desse lado do ecrã está seguro. Se as pessoas não se sentissem seguras, não haveria entretenimento. Apela-se ainda à imobilidade. As coisas são como são (mais mortos em África, mais um atentado na Palestina..., muitas vezes meras perpetuações de preconceitos nocivos) e nada podemos fazer. Quanto muito, a culpa é dos ricos ou poderosos. Se as pessoas pudessem realmente fazer alguma coisa perante as notícias do mundo, seria uma chatice e acabar-se-ia o entretenimento.

Para isso é importante que o conhecimento não seja também demasiado profundo. Daí o constante bombardeamento visual. O que é preciso é chocar e não implicar o espectador. Mas os telejornais sabem que esta via se esgota e é por isso que procuram tão avidamente a tragédia que pode implicar o espectador. Consequentemente, é dada grande importância às ?vagas de frio? ou aos episódio do tipo ?podia ter acontecido a um de nós?. O que tem imagens vale (maremoto), o que não tem não conta (Darfur). Se for mesmo preciso ver, faz-se uma simulação de computador. É a prova como o mundo da televisão se afasta progressivamente de nós, até não nos dizer nada, até ser irreconhecível. Este estado das coisas (?É a vida?), este ?numbing? é perigoso. Primeiro, porque promove a ignorância. Quantas pessoas sabem hoje explicar minimamente o que se passou no Kosovo, uma guerra tão perto de nós (e que ainda não está sanada)? Outro exemplo, no processo de independência de Timor, quandos não entraram na falácia do ?povo Português salvador? esquecendo o passado colonialista na ilha e não percebendo que, em grande parte, se tratou duma apologia do Nacionalismo? Segundo, promove a falta de memória (o Nazismo é coisa de filmes e videojogos) e provoca o entorpecimento geral dos sistemas de alerta. Quando percebermos que os perigos globais não estão no mundo distante do ecrã, será já demasiado tarde?

Nuno Pinho.

Nota: O Nuno pediu simpaticamente que o texto ficasse "fora de concurso", por ter sido ele o vencedor do último.

mva | 11:30|