Os acontecimentos homófobos de Viseu apelam a uma reflexão sobre como a sociedade portuguesa, neste início de novo ciclo político, deve lidar com a discriminação e a desigualdade com base na orientação sexual. Em Viseu ocorreu (e ocorre?) uma manifestação mais violenta, detectada, denunciada e mediatizada, daquilo que é o quotidiano oculto das pessoas homossexuais, alvos sistemáticos de insulto, silenciamento, promoção da hipocrisia, exclusão familiar e profissional, medicalização, perseguição religiosa e menorização social e política em geral.
Há quem, situando-se no campo anti-homofobia, não simpatize com as vítimas de Viseu porque a violência foi exercida sobre pessoas que procuram parceiros sexuais em espaços públicos. Quanto a isto, há que dizer que certas formas de viver a sexualidade são produzidas pelo próprio sistema homófobo, neste caso pelo silenciamento, a remissão para a sombra, a punição social. Mas o que importa é que não pode haver ressalvas estéticas e de gosto na defesa das liberdades; e que qualquer interpretação mais negativa da sexualidade em espaços semi-públicos é infinitamente menos grave do que a violência homófoba. E esta assenta no "nojo" em relação à homossexualidade, como os homófobos de Viseu tão bem expressaram.
Se os acontecimentos de Viseu são a ponta do imenso icebergue da homofobia, importa saber como esta pode ser combatida. O primeiro passo tem sido dado obviamente pelos movimentos sociais que defendem os direitos das pessoas homossexuais. Mas a obrigação é também do Estado, dos partidos políticos e dos media, que devem assumir que a homofobia é uma forma de discriminação tão grave quanto o sexismo e o racismo; e que todas elas são geradoras de desigualdades tão graves quanto as geradas pela desigualdade socio-económica. As estratégias de combate à homofobia são múltiplas e jogam-se em tempos e velocidades diferentes. A mudança de mentalidades que leva ao fim do "nojo" pela homossexualidade é um caminho longo, que passa pela aposta na educação, na visibilização da homossexualidade, e outros processos de transformação cultural. Mas nada disso acontece se não houver, primeiro, a mudança legal que permita a mudança do funcionamento das instituições e a dignificação social das pessoas afectadas pela discriminação.
Um enorme passo foi dado recentemente no campo da igualdade formal: a Constituição, no seu artigo 13º, passou a incluir a orientação sexual como uma das razões pelas quais ninguém pode ser discriminado ou beneficiado. À luz desta alteração, a constitucionalidade de algumas das nossas leis fica posta em causa. Desde logo, a lei das uniões de facto diferencia cidadãos de primeira de cidadãos de segunda: os casais heterossexuais podem adoptar, os homossexuais não; e o Código Civil impede os casais do mesmo sexo de se casarem. Como já se percebeu em Espanha, a simples alteração da redacção do Código Civil respeitante ao casamento, deixando de referir o sexo dos cônjuges, constitui um passo imprescindível para a equiparação legal e para a pura e simples garantia da dignidade plena dos cidadãos e cidadãs homossexuais. Mais do que a "proibição" da discriminação com base na orientação sexual; mais do que a concessão de alguns direitos relativos a uniões de facto; mais até do que a eventual promulgação de uma lei anti-homofobia, o acesso ao casamento por casais do mesmo sexo constitui a mais corajosa forma de combater a homofobia, devido à importância simbólica da instituição do casamento, ao seu carácter legitimador e publicitador da sexualidade dos cônjuges.
Os sectores mais conservadores, desde logo a Igreja Católica Apostólica Romana, consideram o casamento entre pessoas do mesmo sexo uma aberração e uma contradição em relação à sua noção de "matrimónio". Estão errados, muitas das suas afirmações são puro insulto homófobo, mas têm o direito de aplicar as suas regras aos seus casamentos religiosos. Mas a sua opinião deve ser irrelevante para esta discussão - o que se reivindica é uma alteração do casamento civil; e tal como a sociedade civil e o Estado não interferirão nas regras matrimoniais religiosas, tão-pouco a ICAR deverá interferir nas regras civis. Aparentando maior moderação, os sectores políticos conservadores tendem em vários países a propor alternativas ao casamento para casais do mesmo sexo. Essas alternativas são muito semelhante ao PaCS (Pacto Civil de Solidariedade) francês, criando uma figura terceira, diferente quer do casamento, quer das uniões de facto, permanecendo as pessoas homossexuais impedidas de se casarem. Esta posição é inaceitável como o é qualquer tentativa de apenas melhorar as uniões de facto sem avançar para o casamento.
No campo anti-homófobo, em larga medida coincidente com os sectores progressistas, as posições são diversificadas. Há quem ache que a menorização legal e social é intolerável; há quem ache que é preciso esperar por uma maior mudança das mentalidades para poder exigir o casamento; há quem, com argumentos baseados nalgum feminismo e nalgum pensamento radical de esquerda, ache o casamento em si mesmo uma instituição de fundo patriarcal que não deveria ser "imitada" pelos homossexuais; e há quem ache que a homossexualidade é intrinsecamente marginal e acarinhe o seu suposto carácter contra-cultural.
Os argumentos supostamente progressistas contra o casamento (ou que secundarizam essa reivindicação) revelam vários equívocos. Desde logo, o casamento mudou, na lei e nas práticas sociais, graças à acção do movimento e pensamento feministas, e às alterações nas relações de género e nas formas de família; o que se reinvidica é a igualdade legal, não uma qualquer forma antiga de viver o casamento. Obter o direito ao casamento para casais do mesmo sexo é modificá-lo ainda mais no sentido democrático, como sucedeu com a obtenção de igualdade entre homens e mulheres. Em segundo lugar, uma posição crítica em relação à instituição do casamento não é contraditória com a defesa da igualdade de direitos - da possibilidade de pessoas do mesmo sexo se casarem se o quiserem. Mas há mais: a exigência do direito ao casamento constitui um teste fulcral à homofobia: porque revela a enorme contradição entre, por um lado, elogiar o casamento como instituição nobre por excelência, acarinhada e promovida e, por outro, impedir o acesso a ela por uma parte da população (o que só pode ser feito se se acredita que as pessoas homossexuais têm algo de errado). Nas hesitações quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo pressente-se a síndrome de Viseu: o casamento torna evidente, demasiado evidente, a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo, para mais legitimando-a e relativizando a heterossexualidade, que de normativa passa a ser uma entre outras. A reivindicação do casamento para casais do mesmo sexo, parecendo "conservadora", é verdadeiramente "revolucionária". E parecerá um dia tão evidente e "simples" como ter exigido em tempos o direito de voto para as mulheres (apesar de a democracia do voto poder ter sido considerada "burguesa" e não-participativa...).
Levará algum tempo até que a "motivação" homófoba para crimes como os de Viseu seja impossível ou impensável. Ou para que as variações da sexualidade humana, praticada em mútuo consentimento informado, sejam vistas por todos e todas como igualmente normais. Mas demorará muito mais tempo se a nossa Lei continuar ela mesma a ser homófoba.