OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


17.3.05  

A saque.



A Argentina viveu, nos anos 90, uma crise chocante. Talvez por aquele país ter ganho a fama de país desenvolvido, com louros de "primeiro-mundo" vindos já dos inícios do século XX, tenha chocado ainda mais o que ali acontece - o descalabro económico e social num país desses parece (injustamente, é claro) chocar mais do que as "habituais" (não deviam sê-lo) razias humanas e ecológicas de África, por exemplo. Mas a razão verdadeiramente interessante pela qual o caso argentino choca é que exemplifica o que é (o que foi?) a loucura neo-liberal, sobretudo quando os interesses internacionais (de bancos, mafias, narcotráficos, governos, etc) se aliam à desonestidade dos políticos locais. Ao ver hoje Memoria del Saqueo, não consegui deixar de pensar em Portugal. Afinal de contas, uma grande parte do documentário é sobre a forma como se privatizou, as consequências das privatizações, e o discurso ideológico que se criou em torno da "necessidade" de privatizar (estou a referir-me a serviços públicos e a bens públicos, estratégicos).

Quando as coisas são horríveis e nos vemos envolvidos nelas - e, se tivermos um pouco de espinha, tomamos partido - é claro que é difícil ser "neutro". E, em boa verdade, é um tanto estúpido o desejo de neutralidade numa série de coisas. Mas fazer um documentário não é apenas dar um ponto de vista; ou, no caso de eventos fortes, alertar e despertar consciências. É sempre mais eficaz e mais humano dar a perspectiva de quem vive os eventos. Ora, o que Fernando Solanas faz é um documentário propagandístico, na tradição da denúncia, aproximando-se nos recursos narrativos e de montagem, do formato de um jornal partidário esquerdista como-já-nem-há, com recurso a coisas demasiado básicas (o contraste ricos/pobres, etc). Pelo caminho, a linguagem e as generalizações a que se dedica (tipo "o povo saiu à rua contra a globalização") acabam por ser contraproducentes. Solana apresenta-se honestamente como denunciador, dá a cara no filme, mostra-se até como vítima de balas disparadas contra ele por inimigos políticos. Mas nada disto me convence de que um filme mais subtil e rico teria sido tão eficaz como este na denúncia, com a vantagem de poder ser melhor na análise, mais eficaz no convencimento dos que ainda não estão convencidos e menos obsceno no uso das imagens de pobreza, desnutrição e morte.

Não fosse a minha revolta pelo que aconteceu na Argentina e o facto de este filme poder ser um aviso e tê-lo-ia detestado....

mva | 21:50|