OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


14.3.05  

Em estado flâneur.

Como em qualquer cidade, há uma Barcelona "boa" e uma Barcelona "má". A boa é a cidade onde vibra uma sociedade que não espera pelo dom sebastião nem teme que o céu lhe caia em cima. É a cidade de belíssimos bares, restaurantes e lojas; a cidade da beleza urbanística do Eixample, a cidade que assume o seu lado "burguês" como emblema de "progresso" (todas estas noções estão sujeitas a crítica, mas...). A má é a cidade onde é preciso percorrer pelo menos 500 m de túnel apertado, baixo e sem tapete rolante, para fazer a ligação entre duas importantes estações de metro; é a cidade com gente séria, pouco dada à alegria na comunicação (a alegria latino-americana ou de outras espanhas pode ser falsa, mas sabe bem...) e pouco dada à polidez (nem "obrigados" nem "desculpes" - e a polidez de alguns países do Norte pode ser falsa mas sabe bem...); é a cidade com gente vestida de escuro (onde já vi isto?) e com uma considerável presença do sector chunga...

"Subi" pelo belíssimo Passeig de Gràcia até ao carrer Verdi, onde o cinema do mesmo nome ocupa como que o centro deste bairro onde sabe bem ver mais gente jovem, mais alternativa, e assistir a bons filmes em versão original. Hoje recuperei o perdido (em Lisboa) "5x2" de Ozon. Belo, mas triste (não encontro o adjectivo: não é azedo, nem cínico, talvez desencantado - mas desencantado com aceitação).

Dei por mim a pensar no tema da "fidelidade", que prepassa parte do filme. Não é um tema fácil de falar: se digo que "sou fiel", mil pessoas surgirão a dizer que isso soa a moralismo hipócrita. Na realidade, não "sou" fiel. Tenho vindo a ser fiel. Só que este ter vindo a ser, por força do tempo, estrutura-se em maneira de ser - e em "ser". Torna-se numa clara preferência, e não em algo assente em decisões morais tomadas a priori. Não é por achar feia ou má ou errada a "infidelidade" (independentemente de esta se poder exercer com lealdade, como nas relações "abertas" - raio de palavra, como se as outras fossem fechadas!) que sou fiel. É por gostar de o ser, e por não querer magoar a pessoa com quem vivo. É claro que esta afirmação só faz sentido desde que, a montante, haja uma relação onde ambos estejam na mesma sintonia nestas coisas. E há mais: creio cada vez mais que há tantas sexualidades e afectividades quanto pessoas e casais. Quanto mais analisamos cada caso - e a nós mesmos - mais vemos como nos faltam palavras e conceitos para descrever o modo como cada um e cada casal vive uma relação. E ainda bem: é isso que prova que as relações são processos. No campo da fidelidade/infidelidade, é a minha própria estrutura afectiva e sexual que não me "empurra" (ou não me empurra já, dado o tal processo, o tal "ter vindo a ser") para o que se convencionou chamar "a tentação" (raio de catolicismo linguístico!). Posto isto, morro de saudades.

mva | 22:17|