OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


16.3.05  

As pessonhas.

Por três vezes ligo a televisão por breves minutos. Primeiro episódio: está a ser entrevistado um especialista florestal, que fala sobre uma espécie vegetal chinesa que estaria a invadir os campos. Paranóico, penso que o entrevistador vai estabelecer a ligação com a imigração. Não é que ao fim de um minuto o faz mesmo? Segundo episódio: um debate sobre se os refeitórios escolares devem oferecer comida segundo as regras dietéticas muçulmanas; o homem que está contra pergunta ao que está a favor (um catalanófono com nome árabe) se num país muçulmano aceitariam acatar as necessidades de alunos cristãos ou judeus - uma pergunta que está no grau zero quer da retórica quer da inteligência democrática. Terceiro episódio: sobre a incidência da tuberculose, toda a peça é sobre como os imigrantes podem ser os principais portadores; "e a tuberculose pode apanhar-se com um simples espirro".

Autoctonia, desqualifição, contágio. A Europa está, coitadinha, a ser invadida por pessoas com peçonha - as pessonhas. Em qualquer lado - aqui, em Portugal, na França... - as representações sobre os imigrantes assentam nos mesmos recursos, se bem que com (e elas são importantes, porque são quase tudo o que temos para melhorar as coisas) nuances. Os dados apresentados hoje no Público (e que pobre artigo, confundindo causas com consequências e por aí fora) não deveriam surpreender ninguém - a não ser os que acham que a retórica da tendência portuguesa para o cruzamento de culturas e fenótipos tem algum valor e sustentação (essa retórica, aliás, é ingénua a mostrar as suas contradições: fala sempre das supostas misturas criadas pelos portugueses mas nunca de misturas criadas em Portugal graças às pessoas que para "cá" vieram, vêm ou de "cá" foram expulsas...).

Quando é que a Europa perceberá que a) não pode viver sem imigrantes, b) já não existem condições para a existência de estados-nação "puros e c) tem uma responsabilidade (não digo "toda a culpa") fortíssima na criação quer do subdesenvolvimento do terceiro-mundo, quer da criação de representações hierarquizadas de alteridade entre europeus e não-europeus?

mva | 14:49|