23.2.05
As esquerdas e o aborto.
Não há dúvida que, no plano dos princípios, o PCP tem razão quanto à questão do aborto. Sendo este um direito, não deveria sequer ser referendável; e havendo maioria de esquerda no Parlamento, este deveria alterar a lei, no sentido da despenalização.
Mas isto é o plano dos princípios. Depois há toda uma história. E a história começa com a recusa, no tempo de Guterres, de legislar havendo uma maioria de esquerda. Foi feito o referendo. E os resultados - bem como a "afluência" às urnas e o resultado não-vinculativo - são conhecidos. O PS teve, então, o seu pior comportamento de sempre.
Veio a direita para o poder. Face à expectativa de esta ficar a governar durante quatro anos, sectores que incluiram o BE e o PS lançaram uma petição para a realização de um novo referendo. Participei activamente nisso. O PCP recusou-se e criticou fortemente a iniciativa. A ideia desta era conseguir trazer o assunto à discussão de novo num quadro político sem maioria de esquerda. E reconhecendo um outro problema político: tendo havido referendo, e mesmo sem ter sido vinculativo, a legitimidade política da alteração da lei seria reforçada se tal se conseguisse através de novo referendo.
É esta também a noção do PS sobre o assunto. Mas é claro que, no caso deste partido, tal se deve sobretudo à necessidade de conciliar interesses muito diversos, de garantir centrismo, e de satisfazer os sectores mais conservadores do PS, incluindo sectores anti-escolha que o PS de novo levou para o parlamento. Más razões, sem dúvida. Sobretudo agora que o PS tem a maioria absoluta.
Todavia, Sócrates comprometeu-se na campanha a fazer novo referendo. Deve, como é óbvio, cumprir a promessa. À esquerda não-PS compete pressionar para que a promessa seja cumprida e uma das maneiras de o fazer é exigir que o referendo se faça quanto antes. Sobretudo sem correr o risco de vir aí um presidente da República que não aceite a convocação do referendo.
Já a data, podendo coincidir com o Verão (e as datas estão limitadas pela realização de outras eleições, autárquicas e presidenciais), não é a melhor, reconheço. A não ser que se jogasse no mais cedo possível, antes ainda das férias, por exemplo os inícios de Junho.
A posição de princípio do PCP é respeitável e simpática por isso mesmo - porque é posição de (bom) princípio e recorda não só que o aborto é um direito, como chama a atenção para a existência de uma maioria de esquerda recém-legitimada pelo voto. Mas sabendo nós que o PS não aceita nada que não o referendo, o melhor não é pressioná-lo - garantindo que o assunto não sai da agenda e não é protelado para as calendas, e acrescentando a legitimidade extra de uma nova decisão referendada? Ambas posições, do PC e do BE parecem-me, paradoxalmente, complementares. Assim como a suposta preocupação de Sócrates de que o referendo seja ganhador. Têm é ritmos e tácticas francamente diferentes. Três ritmos e tácticas diferentes.
Não seria altura - a melhor altura - de se entenderem numa estratégia comum? Talvez os posicionamentos de cada partido sejam sinal disso mesmo: só se negoceia depois de cada parte estabelecer as suas "fronteiras".
mva |
15:33|
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