OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


21.2.05  



Apesar da enorme alegria e alívio, clima estranho em Lisboa. Ontem à noite não se ouviam buzinadelas. As ruas não se encheram. Sócrates transpirou umas breves e inócuas palavras de vitória e retirou-se. O país votou em massa contra Santana Lopes e a vergonha do desgoverno de direita. Votou com a consciência de que o país atravessa uma fase difícil. Mas não votou, creio, com entusiasmo pró-PS. Mas isso é interpretação à flor da pele. O que é certo é que o PS teve maioria absoluta e não tem agora qualquer desculpa para não governar, e bem. O PS é, agora, a grande incógnita, não as palermices da direita. É o que o PS fará - e não fará - que nos deixa o coração nas mãos.

O PCP não "sobreviveu". De há uns tempos para cá que me parece estar a viver um paradoxo: purgados os dissidentes, tomado o poder pelos duros, há toda uma geração e todo um eleitorado para quem essas questões não são importantes, mas sim a resistência, a actividade sindical, a presença autárquica e um imaginário algures entre o 25 de Abril e a Festa do Avante. Isto é paradoxal porque aquilo que impede o PCP de mudar de discurso (digamo-lo com clareza: de se bloquificar) não são as referências históricas ao Leste, a que provavelmente uma maioria de militantes, sobretudo os mais novos, já não liga nada, mas sim o empecilho do centralismo democrático. Quando este acabar, é certo que o PC perderá força, mas enriquecerá muito mais possíveis alianças da esquerda, de sectores do PS, ao Bloco.

O Bloco sobe, e muito e, para quem ainda não tenha percebido, refundou-se (e os eleitores refundaram-no...) como partido nacional e mais popular. O Bloco tem agora duas tarefas pela frente, a meu ver. A primeira é fazer oposição pela esquerda, face a um PS que com certeza se sentirá refém do centro que julga tê-lo eleito. Isto é, o Bloco deverá continuar a contribuir historicamente para a criação de uma hegemonia de esquerda moderna que possa permear o PS (e o PC). Assim se influencia também a governação - no parlamento, na rua, na intervenção mediática, nos movimentos sociais - e não apenas se o PS tivesse tido maioria relativa.

Quanto à direita, que dizer? No teatro da direita, Paulo Portas faz a performance do homem honrado para conseguir uma vaga de fundo de apoio, para poder finalmente refundar o CDS no partido democrata-cristão de que agora fala quase tanto como de deus. Deixá-lo. Assistiremos deliciados a uma daquelas lutas "civilizadas" pelas heranças e arcas das tias que tanto caracterizam a betocracia. Santana Lopes, esse optou pela performance do canalha: o populismo e o personalismo levam-no a não se demitir e a lançar-se na guerra interna. Assistiremos deliciados a uma daquelas lutas histéricas pelas heranças e a courelazita de terra que tanto caracterizam a burgessocracia.

Livrámo-nos de Santana. Livrámo-nos do populismo. Agora vamos exigir a este governo que vem que honre a palavra "esquerda" que tanto proclama.

mva | 11:23|