OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


12.1.05  

Reunião de Família.

O movimento de "defesa da vida" começou hoje o seu congresso sobre a família. Olhemos, caras amigas, para o programa do evento, patrocinado pela Câmara Municipal de Lisboa e pelo Ministério da Educação. A abertura está a cargo, entre outros, de Santana Lopes, primeiro-ministro não-eleito e demissionário em gestão, mas um querido, apunhaladíssimo, coitado; pelo Ministro da Segurança Social, Família e Criança (e criança, ora bem!) e pela Ministra da Educação, que é educadérrima, ou não tivesse sido criada pela Tia Assunção, que era rigidérrima. No painel "A família como referência humana" (para não confundir com as famílias animais do National Geographic) discursam três professores da Católica. Depois do almoço, segue-se "Luzes e sombras da família". Não, que disparate, claro que não se trata de uma análise da escuridão da sala de piano da Tia Leopoldina que tanta saudade deixou, mas sim de palestras sobre as "dificuldades resultantes" da "cultura ambiente" e da "estrutura social", essas coisas desagradáveis que soam imenso a reunião de comunistas. O painel do lanche - ai, os lanches de canasta da Tia Leontina, que saudade - é sobre "A relação Família-Estado na promoção do desenvolvimento social", pois toda a gente sabe que há Uma Coisa chamada A Família que entra em relação com o Estado e que essa coisa, decidida há séculos no pavilhão do jardim da Tia Anunciação, está ameaçadíssima pela "cultura" e pela "estrutura social", que são umas coisas que se ensinam nessas universidades do Estado e não sei quê. No dia seguinte, o padre Feytor Pinto, que era como se fosse da família lá em casa, faz o desjejum perguntando-se "A família de hoje precisa de respostas. Quais?", o que é duma humildade impressionante, pois toda a gente sabe que as respostas aprendem-se na catequese e pronto (tá bem, vá lá, pode-se aprimorar na Universidade Católica depois...). Vários especialistas respondem com títulos onde aparece bastas vezes a expressão "integral" (educação integral, planeamento integral), que se supõe ter a ver com saudáveis práticas alimentares com coisas boas lá da solar no Minho ou do monte no Alentejo e sem produtos geneticamente modificados - como, no caso do planeamento, as pílulas anticoncepcionais, ou os coisos, ai como é que se chama, aquilo de borracha? Depois do almoço, a digestão poderá ser bovinamente (bovinamente, ai adoro, sai-me cada uma...) realizada ao som da conferência "A sexualidade como valor a descobrir", o que, como toda a gente sabe, é aquela maçada que advém de uma pessoa partilhar o quarto quando se casa, aliás foi uma péssima invenção, que eu ainda me lembro de em casa da Tia Maria da Consolação era quartinhos separados, oh, oh (values!, diz o Tio George, que é um bocadinho possidónio mas a gente tem que ser tolerante). Como a experiência pode ser um bocadinho traumatizante, seguem-se palestras sobre terapia e mediação conjugal e familiar, com destaque para a presença da sempre inspiradora Catalina Pestana (não confundir com a Tia Catalina que na famosa capela de sua casa inventou a expressão "orientação conjugal" ao dizer às sobrinhas com quem poderiam ou não ca$ar-se), seguida de Luís Villas Boas. O tio Villas vai falar sobre "Soluções de Acolhimento: respostas imediatas; oportunidades de preservação do núcleo familiar; oportunidades de reorganização familiar" (com os pontos-e-vírgula e tudo), assunto em que é especialista desde que aprendeu com a Tia Maria do Patrocínio como se reorganiza uma família expulsando a criada que desviou o primo Diogo e enviando o rebento da loucura para um Refúgio - não o da Tia Catalina, que é para os pobres mesmo pobres, mas um mais jeitoso que havia acho que no Algarve ou assim.

A coisa vai longa - o congresso e o postucho. No terceiro dia há umas coisas aborrecidas feitas por uns estrangeiros, mas o espírito de família volta a surgir na grande finale, a cargo de Bagão Felix, Ministro das Finaças - pois como dizia a Tia Henriquina, isto da Família tem muita finança que se lhe diga -, Maria José Nogueira Pinto, da Misericórdia (Santa Casa, Santa Casa, já dizia a Tia Maria das Dores), o "Dr .Nuno Alburquerque Morais Sarmento", que é um querido e não queria que se pusesse o "Albuquerque", mas achou-se que se devia, em homenagem à Tia Mercedes dos Albuquerque de São Martinho do Porto (e com o bronzeado de S. Tomé - ou era do Príncipe?, não sei, mas era no ultramar - fica sempre bem um Albuquerque, a lembrar a gesta dos antepassados). Mas la cerise sur le gâteau será sem dúvida a palestra do Bispo Auxiliar de Lisboa. É que, caras amigas, já dizia a Tia Maria da Glória: "Ninguém sabe tanto sobre família como um bom bispo. O resto é tudo Revolução Francesa".

mva | 17:09|