OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


31.1.05  

Por favor estudem-nos!

Quem pensa que a política sexual é um forçado e obscuro conceito académico, deveria fazer uma pesquisa sobre a actual campanha eleitoral portuguesa para perceber como ela existe mesmo. Mais: para perceber quão central ela é.

Temos um primeiro-ministro que decide fazer da sua heterossexualidade e do seu modelo de relacionamentos um valor acrescentado para angariar votos junto dum campo social dominado por conceitos hegemónicos de género e sexualidade. Temos uma sociedade inteira a congeminar e disseminar boatos não só sobre a orientação sexual do principal candidato da oposição, como sobre os nomes dos hipotéticos companheiros. Temos o dirigente de um partido de direita e ministro da coligação no governo proclamando valores conservadores de género e sexualidade e apoiando uma política do armário que passa erroneamente por respeito pela privacidade. Temos até um dirigente do único partido com uma agenda emancipatória nas questões LGBT a gerar, a partir duma infeliz frase, uma catadupa de reacções hipócritas falsamente simpatizantes da liberdade e direitos sexuais. E por aí fora.

Esta campanha revela, como poucos outros "dramas sociais", as estruturas profundas marcadas pelo heterossexismo, o desprezo pelas questões de género (já repararam como, ao contrário de Espanha, a agenda da violência de género não apareceu nos elevados debates dos últimos dias?), a homofobia estrutural e o armário. Com todas as consequências que isto tem: um clima de alusão, boato, intriga e dependência das opiniões políticas e decisões de voto da apreciação subjectiva das condutas amorosas dos candidatos - todo o contrário do dito respeito pela privacidade.

Tão grave como isto, é constatar que esta é a gramática com que funcionamos. Esta é a nossa triste gramática de política sexual. Compare-se com duas outras. Tanto a campanha eleitoral estadunidense como a espanhola foram marcadas por questões de género e sexualidade. No primeiro caso, a gramática é a dos valores de cariz religioso e dos valores da liberdade individual. Podemos não gostar dela, dos seus termos e até da dependência dos adversários do fundamentalismo (Kerry, por exemplo...) em relação aos termos estabelecidos pela América profunda. Mas a verdade é que é uma gramática pública: os termos do debate são conhecidos, abertos, postos na mesa e é em torno deles que se discute. No caso espanhol, a gramática é - ainda ou outra vez - a das duas Espanhas, do conservadorismo Opus Dei da meseta e da herança do franquismo, versus o progressivismo anticlerical, republicano e ferozmente libertário. Também ele pode ser limitado, mas cria um espaço semântico público em que a discussão é feita.

Entre nós que temos? O reino do desprezo pelas questões femininas (incluindo o efeito de hegemonia que é as mulheres babadas em Braga com PSL...), o efeito do armário e da homofobia preemptiva, o boato: tudo coisas que não são postas em cima da mesa, que não são dizíveis com transparência, que dependem da alusão e das leituras de segundo nível. Em suma, obscuridade (para não dizer obscurantismo) quase absoluta.

Por favor, há algum sociólogo, antropólogo ou politólogo out there que queira estudar esta coisa?

mva | 18:00|