Por baixo da praia, a calçada. Ou: o PS que não teremos.
Um pequeno episódio pode às vezes ter um grande significado. Vi ontem um porta-voz do PS dizer para a TV que Paulo Pedroso ficará em lugar inelegível nas listas do partido. O porta-voz repetiu "não elegível" várias vezes. Mais: disse que o próprio Pedroso nunca aceitaria ser deputado na hipótese absurda de, mesmo assim, ser eleito. Tudo isto foi dito pelo porta-voz com satisfação, orgulho e aquela atitude que parece (quer mesmo...) dizer: "Não se preocupem, ele não vai ser mesmo eleito".
Quando se trata assim os seus, está tudo dito. O PS não mudou. Muitos de nós continuamos com a ilusão de que o PS possa um dia tornar-se num partido de esquerda. Um partido de governação, sem dúvida; um partido de abrangência, é claro; mas um partido de esquerda, isto é, com uma visão da sociedade baseada em ideais de igualdade e em valores de diversidade.
O PS tinha agora a sua grande oportunidade. A direita está derrotada e o PS poderia avançar mais no sentido daqueles ideais e daqueles valores. Mas tudo indica que não é isso que Sócrates ou Vitorino querem. A questão é: porquê?
Há várias respostas. A primeira tem a ver com aspectos culturais e de mentalidades dos seus dirigentes. O staff do PS - aquele que é visível e toma as rédeas do partido - reflecte o centro "neutro" da nossa sociedade. Tem medo da igreja, namora o capital, tem ansiedade com as sondagens, não quer "escandalizar" ninguém. É a pequeníssima burguesia ou a classe média aflita na sua gloriosa versão portuguesa. É o universo das pessoas que de tanto repetirem que "primeiro é preciso que as mentalidades mudem" nada fazem para ajudar a mudá-las e, desde logo, perpetuam a não-mudança das suas próprias mentalidades. O PS, nestas questões de "isso é tudo muito giro lá fora mas em Portugal não dá", é o campeão da self-fulfilling prophecy.
A segunda é a rede clientelar que o PS criou. Não há rigorosamente nenhuma diferença entre a negociata do PSD e a negociata do PS quando têm que resolver o complicado problema dos laços com autarcas corruptos, pequenos oligarcas e patronos de província, líderes futeboleiros e outras manifestações de iliteracia - da propriamente dita à democrática.
A terceira é histórica. O PS português não vem da tradição trabalhista como o Labour (pré-Blair, claro), nem da tradição social-democrata (como o SPD), nem é um partido socialista operário, como o PSOE (reflectindo o nome as origens comuns com os PCs). É bom não esquecer que o PS vem da tradição oposicionista soft ao salazarismo; que só foi fundado nas vésperas do 25 de Abril; que foi criado de cima para baixo e não de baixo para cima; que se inspirou num difuso republicanismo laico e não num pensamento socialista. E, finalmente, que a entrada de pessoas vindas de outros sectores (por exemplo, do PC, ou do mundo universitário) não mudou um mílimetro o PS. Os artigos e opiniões deste sector "sangue fresco" parecem sempre estar a falar de um PS que não existe...
A quarta tem a ver com a sua incapacidade em incorporar duas correntes ou formas de mobilização social importantes: a do sindicalismo e a dos novos movimentos sociais. A primeira continua esmagadoramente ligada ao PCP; a segunda é crescentemente representada simbolicamente pelo Bloco de Esquerda. Todos perdemos com isto, pois estas causas acabam por ficar cada vez mais acantonadas nas margens, não sendo filtradas (ao contrário do que está a acontecer em Espanha ou em França) pelo "centro" governista.
É por tudo isto, creio (e não só pela circunstância de Sócrates ter sido eleito ou de Vitorino escrever o programa, embora estes dois enormes bluffs políticos certamente desajudem), que o PS não muda nem mudará. Nunca dali virão propostas sobre, por exemplo, a saúde ou o sector energético que possam soar remotamente a "nacionalização" (quando tal não é necessariamente uma prática "comunista", como o prova o Canadá, por exemplo). Nunca dali virão propostas arrojadas no campo do combate à fraude fiscal ou do levantamento do sigilo. Nunca dali virão propostas de legalização dos imigrantes, ou propostas do alargamento do casamento e adopção a casais de gays e lésbicas. Esperem pelo programa de governo e hão-de ver: por baixo de algum verniz, não haverá nada. Por baixo da calçada não vai estar a praia, mas sim o seu exacto contrário.
Este é o nosso drama: a barreira balofa, bacoca, pequeno-burguesa e aflita que impede a adopção de qualquer política progressista e emancipatória. Assim que o PS regressar ao governo, lá teremos o retorno dos caciques de província; as atoardas do sector católico (com o qual Sócrates já refez o contrato); a performance pública de líderes gastos na tentativa desesperada de convencerem as pessoas conservadoras deste país (que eles imaginam existirem mais do que existem realmente) de que o PS é a mesma coisa que o PSD só que com mais chá.