OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


13.11.04  

Globalização das coisas, nacionalização das pessoas.

A proibição do Vlaams Blok na Bélgica é um erro estratégico. Na Holanda, a repressão sobre os assassinos de Van Gogh deve ser implacável. Mas dizer que a culpa desta tensão étnica e religiosa reside em políticas multiculturalistas ou que a intolerância nasce da excessiva tolerância, é uma confusão perigosa.

Em primeiro lugar não existe uma política multiculturalista, mas sim políticas, no plural. Há-as melhores e piores. As piores são as que exageram as diferenças, em nome da sua preservação. Na Holanda fez-se esse erro, um pouco na linha do "separados mas iguais".

As melhores são as que não tomam "A Cultura" como uma realidade separada de tudo o resto, que não prendem as pessoas a uma definição rígida (e definida por quem?) de cultura do seu grupo de origem.

Só haverá imigrantes integrados, se essa integração for uma integração na cidadania, nos direitos, na economia. A "cultura" é o precipitado de todas estas coisas, não um pacote de valores que se transporta e que é sempre igual. A cultura não existe fora das relações de poder. Nunca haverá sociedades multiculturais tolerantes na Europa enquanto os imigrantes - e refiro-me sobretudo aos dos contextos islâmicos - forem apenas força de trabalho, não puderem votar, não puderem tornar-se cidadãos nacionais, ou enquanto os seus países de origem continuarem o miserável resultado do colonialismo e dos totalitarismos que lhe seguiram.

O resultado da recusa de cidadania para os imigrantes é a sua retracção para um radicalismo identitário de raiz religiosa; e é este que, por sua vez, atiça o radicalismo xenófobo de muitos europeus. As democracias europeias não podem, sem dúvida, tolerar os fundamentalismos, sejam eles islâmicos ou cristãos, árabes ou europeus. Mas também não podem continuar a viver na fantasia do Estado-nação culturalmente uniforme e autónomo, sobretudo porque política e economicamente tal já não existe. Neste quadro, o multiculturalismo "separados mas iguais" só agrava o problema, pois rapidamente se mistura a percepção de pertença a um grupo cultural com a percepção de pertença a um bairro degradado habitado por desempregados ou sub-empregados.

A diferença cultural que interessa não é a diferença marcada por rígidos parâmetros étnicos, raciais ou religiosos. É, antes, aquela que decorre da criação constante de novas formas de estar e ser em sociedades com igualdade de oportunidades e gente vinda de muitos sítios e com variados estilos de vida. E a única semelhança cultural que interessa não é a semelhança marcada pela precedência da "cultura" nacional do país de acolhimento, mas sim aquela que é marcada pelo respeito dos direitos humanos - aplique-se a "imigrantes" ou a "nacionais".

A solução mais simplista é dizer que o Ocidente é superior, que o Islão é bárbaro, ou que o multiculturalismo é uma mariquice. Porque está de acordo com a longa tradição histórica de definição da Europa por oposição ao Oriente árabe e islâmico. Se formos (outra vez) por aí não vamos dar a lado nenhum a não ser a mais violência. Como já não estamos num mundo de estados-nação isolados, com economias próprias, a repetição da História será, como o dizia o outro, uma tragédia.

mva | 11:25|