OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


13.11.04  



A direita é a esquerda e a esquerda é a direita.

A retórica da actual direita estipula o seguinte: a esquerda está no poder mesmo quando não está no poder e reina através de uma coisa tenebrosa chamada o politicamente correcto, exercendo uma censura sobre outras opiniões e promovendo uma visão irrealista da realidade ("as pessoas são fundamentalmente boas", etc, etc). A coisa chegou ao ponto de a expressão "pensamento único", cunhada por pensadores de esquerda para referir o discurso neo-liberal, ser agora usada pela direita para referir o pensamento supostamente reinante neste mundo assustadoramente esquerdista (!). Como se não bastasse, agora a ginástica retórica conseguiu um feito sublime: as vozes de direita é que são dissidentes, elas é que têm o charme da rebeldia, da clandestinidade, do contrapoder. Esta noção está a banalizar-se de tal modo que surge, por exemplo, numa crónica do Público de Esther Mucznik: «O relativismo cultural em que a Europa parece afundar-se, a visão da laicidade entendida como a negação da religião, a tentativa de calar o pensamento dissidente, imediatamente taxado de reaccionário, intolerante ou racista (...)»

(Isto é dito para, mais tarde no texto, saudar a eleição de Bush e proceder a um salto lógico curioso: dizer que os americanos, ao contrário dos europeus, perceberam que o fundamentalismo islâmico é um perigo, à semelhança do que aconteceu quando da ascensão de Hitler. Como se pode escapar, sobretudo à esquerda, a este tipo de armadilhas? Dizendo que o fundamentalismo (islâmico ou outro) é de facto um perigo a não menosprezar. E que deve ser esmagado nas suas formas violentas, prevenido nas suas causas sociais e reparado nas suas causas históricas.)

mva | 01:21|