OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


10.11.04  

A Constituição.

O partido a que pertenço, o Bloco, vai apelar ao voto contra a Constituição Europeia no referendo. O "não" do Bloco e de vários partidos da esquerda europeia apresenta-se como estando baseado em razões diferentes das dos nacionalistas de direita e dos anti-europeístas de esquerda, como os comunistas; apresenta-se como "europeísta de esquerda", apelando a um processo constituinte democrático posterior a uma eventual recusa desta Constituição. O "não" do Partido da Esquerda Europeia baseia-se, portanto, nas questões de falta de democraticidade do processo e, sobretudo, em questões relacionadas com a continuação dos tratados de Maastricht, Amesterdão e Nice: a ideia de que «a economia de mercado torna-se no pilar constitucional da União, em vez dos direitos sociais e da ideia de pleno emprego»; o argumento refere ainda questões relacionadas com a ideia de um exército europeu, subordinação à Nato, e medidas anti-imigração.

Estes argumentos não me bastam. Um artigo recente de Vital Moreira no Público chama a atenção para o facto (segundo ele, claro) de que a Constituição constitui a ampliação e o reforço dos direitos dos cidadãos europeus. É claro que a Constituição não obriga directamente os Estados-membros, salvo quando estes são chamados a implementar o direito comunitário; mas «os cidadãos nacionais dos Estados-membros da UE beneficiam directamente desses direitos fundamentais perante as instituições comunitárias (e perante as autoridades nacionais quando aplicam direito comunitário), podendo queixar-se ao provedor de Justiça europeu...». Também esta argumentação é insuficiente, já que se nota a referência constante ao âmbito de aplicação: comunitário, e não necessariamente nacional.

Não só os dois argumentos são pouco convicentes, como parecem focar questões diferentes: o primeiro tem um peso esmagador de questões socio-económicas, relacionadas com o Trabalho; o segundo centra-se nos direitos fundamentais. Estaremos perante a velha dicotomia entre "velhas" agendas da esquerda (o conflito trabalho-capital) e "novas" agendas (os direitos no seu sentido mais amplo)?

Pessoalmente, preciso de ouvir argumentos pró e contra a Constituição que articulem sem hierarquia as duas agendas - aliás, que nem as encarem como agendas diferentes. Não vejo ninguém fazer isso. O meu partido já o fez mais, no início, do que o faz hoje; e Vital Moreira (aqui abusivamente usado por mim como "representante" da esquerda mais "moderada") parece assumir a inquestionabilidade dos modelos socio-económicos presentes.

O referendo à Constituição anuncia-se desastroso, como têm sido todos os referendos. É uma forma manca de tentar legitimar um processo constituinte feito em directório restrito. Esta é uma questão de procedimento que, obviamente, nos faz ter as mais sérias dúvidas sobre esta Constituição. Mas também é verdade que a União se encontra numa fase perigosa: o alargamento a Leste trouxe para o seio da União sociedades e governos que são mais papistas que o Papa (e mais bushistas que o Bush...)simultaneamente nas questões de modelo económico e social, e nas questões de direitos. Um processo democrático constituinte no futuro não daria um poder excessivo a estes traumatizados do "socialismo real"?

Não sei. Não sei ainda como votarei. Nem se concordarei com a posição do meu partido. A primeira coisa que vou fazer - por limitada que seja, dada a relativa ignorância em questões de Direito, nomeadamente constitucional, e dado que estas coisas não se resumem à avaliação de textos - é ler a dita Constituição. Já cá canta um exemplar em casa. Aproxima-se uma empolgante seca...

mva | 13:03|