OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


14.9.04  

A palavra que já tinha morrido.

"Fascismo" é uma palavra com dois usos. O primeiro é da ciência política. O segundo é do senso-comum: "fascista" usou-se para referir não uma ideologia política concreta ou um regime, mas sim um agregado de coisas: autoritarismo, conservadorismo, moralismo, etc. A palavra caiu em desuso com a democracia, e ainda bem. Deixei de a usar para dizer mal de alguém, porque deixei de achar necessário fazê-lo; e ainda bem.

Mas agora apetece mesmo. Parece que Bagão Felix (que me lembra sempre o Dr. Septimus do Blake & Mortimer...) recuperou o estilo "Conversas em Família" de Marcello Caetano. (Este estilo foi inteligentemente apropriado por outro Marcelo, ao ponto de adquirir o estatuto de "O" Professor num país iletrado e num mundo da comunicação social servil). Bagão Félix veio para as TVs - que lhe deram tempo de antena simultâneo, qual ditador - explicar que o orçamento de Estado é como o orçamento das famílias e que não se podem fazer milagres.

Estas coisas passam com uma facilidade terrível e eles sabem-no. Como o sabia Salazar, cujo sucesso assentou em adaptar o ideário político ao senso-comum da sociedade rural-católica portuguesa. A direita no seu esplendor é isso mesmo. Ora, acontece que a nação não é uma família grande, e a família não é uma nação em ponto pequeno. As duas são construções ideológicas tremendas (que quer ele dizer com "família"? Que quer ele dizer com "nação"?) e nem os termos são correctos, nem muito menos a equação pode ser feita.

Mas sabem onde (re)começou tudo isto? No Euro 2004, quando inteligentemente futeboleiros, governo e mass media promoveram a histeria identitária das bandeiras. Percebe-se agora que estas coisas raramente são inocentes. E é aqui que a palavra "fascista" volta a ganhar valor (no seu segundo sentido). A estratégia comunicacional de Bagão Felix (como a de Portas com o Borndiep) é "fascista": mentirosa, demagógica, paternalista, familista-nacionalista.

Claro que cada qual socorre-se do que tem. Nos EUA, por haver apesar de tudo uma democracia a funcionar, Bush só pode jogar a cartada "fascista" através de duas vias: o militarismo patrioteiro e o moralismo sexual, atacando o Mal encarnado no Iraque e propondo a proibição dos casamentos gay. Na Rússia, que nunca viu um dia de democracia, Putin acaba de tomar o poder nas mãos, abolindo a "democracia" nas regiões, tudo em nome do combate ao terrorismo e socorrendo-se de um czarismo a que os russos estão habituados. Em Portugal, o governo socorre-se das velhas estruturas emocionais: a família com o seu chefe, a nação como grande família com o seu grande chefe.

Nunca pensei que isto viesse a acontecer: ter que usar outra vez a expressão "facho". Aqui vai: Bush é "facho". Putin é "facho". Paulo Portas é "facho". Bagão Félix é "facho".

mva | 15:50|