OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


6.9.04  

O comboio do aborto.

Às vezes receio que em Portugal (como, provavelmente, na Irlanda ou na Polónia) possamos ter perdido o "comboio do aborto" - isto é, o timing para a alteração das leis que criminalizam quem aborta.

Isto é: em muitos países, a descriminalização deu-se quando as políticas de planeamento familiar e educação sexual não se tinham ainda democratizado e massificado; quando a igualdade de género não se tinha ainda tornado mais visível (por muito enganadora que seja) nas várias áreas da vida em sociedade; numa época em que a agenda feminista não tinha ainda apanhado com o backlash; numa época em que o neo-liberalismo na economia, o neo-conservadorismo na política e o individualismo metodológico nas ciências sociais não tinham ainda obtido ganhos significativos; numa época em que ainda não tinham ocorrido avanços técnicos que hoje ajudam a modificar as percepções - das imagens ecográficas de fetos até aos "medos" suscitados pelos avanços da biogenética. E por aí fora - incluindo o crescente desinteresse popular pelo exercício da democracia e do voto....

Todas estas coisas - por muito paradoxal que isto possa parecer relativamente a algumas delas - têm sido benéficas para o campo anti-escolha. Alguns argumentos clássicos pró-escolha colhem cada vez menos: os de "saúde pública", os do "vão-de-escada", os das dificuldades económicas, os da ignorância, etc. Ou porque houve transformações significativas nas realidades que há 15 ou 20 anos os sustentavam, ou porque houve transformações significativas nas percepções da sua relevância. Ou ambas as coisas.

Pessoalmente, continuo a achar que a decisão de abortar é um direito da mulher a decidir o que se passa no seu corpo, e um embrião/feto é algo que se passa no seu corpo, independentemente de ser uma "forma de vida". Nisto sou bem mais radical do que a maioria dos pró-escolha. Assim como continuo a achar que o "argumento" da vida por parte dos anti-escolha assenta numa perigosa demagogia de cariz confessional que deveria ser mais acirradamente desmontada e contra-atacada.

Mas no plano político e mediático os argumentos pró-descriminalização têm cada vez mais que centrar-se na questão das mulheres em tribunal. Nas condições actuais é talvez a única via que pode mobilizar maiores consensos e conduzir a uma eventual vitória num referendo (mais difícil a cada dia que passa, não só pelas razões expostas no primeiro parágrafo como pela crise da participação cívica na democracia). Mas seria sobretudo o melhor argumento para permitir a uma maioria de esquerda no parlamento a alteração legislativa sem referendo - e possivelmente alargando o campo a alguns votos PSD. Foi uma estratégia semelhante que seguimos no movimento da petição do ano passado - e que juntou tanto pessoas como eu, como católicos que certamente têm ressalvas em relação ao abortamento em si.

Este meu desabafo tem uma origem e um propósito: declarações cada vez mais audíveis de algumas personalidades que afirmam que os termos do debate estão equivocados (o que poderá conduzir a maior desinteresse popular); e "análises" que, por muito mal intencionadas que sejam, não deixam por isso de ter um fundo de verdade. Ouçamos o que o "campo intermédio" diz (aqueles que, não estando do lado pró-escolha, não pertencem ao campo fundamentalista), porque isso será útil para levar a bom porto a alteração da lei. Não porque estejam cheios de razão, mas porque normalmente sinalizam bem "o que anda por aí". O cabeleireiro da Zita Seabre existe mesmo, hélas...

Alterada a lei, todos e todas poderemos, então, defender e aplicar em consciência o que melhor acharmos: desde o aborto como direito de escolha da mulher, até à "Vida" como bem supremo. Desde o aborto num hospital do Estado, até à busca de apoio (suponho que financeiro?) numa das tão propagandeadas casas das associações "pró-vida".


mva | 18:21|