OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


8.9.04  

Ainda o aborto.

Outro aspecto do timing do aborto é... a perda de tempo. Porque mais ano menos ano teremos a despenalização do aborto. Como tivemos tantas outras leis consonantes com a "tradição moderna" europeia. Tal acontecerá ou através de uma aplicação da lei à maneira espanhola; ou através de novo referendo; ou através de uma maioria de esquerda (sem Guterres) na AR.

E essa lei - e agora comento de certo modo os comentários ao post anterior - definirá, como todas as leis de aborto por essa Europa fora, um prazo de x semanas para abortar. Porque todas as leis de aborto caminham sobre um paradoxo: despenalizam a prática até um certo tempo apenas, e consideram sempre o aborto algo no mínimo "estranho".

Não será aqui o sítio para discutir o carácter "construído" (até pelas confusões que a expressão gera...) das ideias de maternidade, de ser humano, de criança, etc. Mas convém não esquecer a "normalidade cultural" do infanticídio à nascença em muitas épocas e culturas; ou da entrega de recém-nascidos a outrém para "criar" (algo de socialmente diferente da actual adopção), e por aí fora. Não será o sítio ou o momento para isso, até porque é com esta cultura e este tempo que estamos a lidar.

Mas, no plano das convicções e dos princípios, faz-me imensa confusão ver tanta hesitação em aceitar o argumento do "direito da mulher sobre o seu corpo". Troque-se "mulher" por "homem" e desaparece a hesitação, não é? Dir-me-ão que é por causa da especificidade de estar em causa uma outra vida humana potencial. Ao que se seguiria, eventualmente, uma discussão sobre "quão vida", "a partir-de-quando-vida", "e porque não aos sete meses?", and so on.

Bom, na realidade (e partindo do princípio algo absurdo e pouco provável de que uma mulher se teria "esquecido" de tomar uma decisão sobre querer ou não prosseguir a gravidez), a partir do momento em que o feto seja viável fora do útero, ele pode ser "nascido" e não ser abortado; com certeza que o Estado e as pessoas preocupadas com a "Vida" poderão/deverão ocupar-se desse ser indesejado, não é? Até ao momento em que não seja viável fora do útero, a mulher grávida deve ter o direito de decidir o que fazer.

PS: Outra questão que muitas vezes se coloca é a do "direito do 'pai'". Mas é perfeitamente assustador que alguém possa admitir que, não querendo a mulher prosseguir a gravidez que lhe acontece, possa ter que o fazer porque alguém reivindica o "futuro" produto do seu "investimento" em material genético no "terreno de cultivo" de outrém... Convém não confundir princípios ou propostas legislativas com a forma como as pessoas concretas vão depois gerir os seus afectos e relações. Isso é com elas. Os direitos (e deveres) é com todos.

PPS: Nunca é de mais dizê-lo: as minhas posições não são necessariamente (e sei que não são) as das pessoas com quem colaborei e colabora em campanhas pela despenalização. Nem os propósitos dessas campanhas são necessariamente consonantes com a minha "visão do mundo"... ou da "vida".


mva | 01:50|