OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


28.8.04  

Regresso às trevas.

Regresso hoje a Lisboa. Isto é, regresso hoje à realidade. Isto é, acaba hoje a ilusão de paz que horas de praia proporcionam, e vêm aí as trevas. Não, não se trata do trabalho ou das obrigações, quase todos agradáveis ou suportáveis. Trata-se de regressar à realidade do país onde o governo proíbe a entrada em águas nacionais do barco da Women on Waves.

O governo do primeiro-ministro não-eleito, na sequência da fuga do primeiro-ministro eleito, da tibieza política do Presidente da República, e refém da extrema-direita, da seita católica-romana e da oligarquia cleptocrática, resolveu seguir o caminho do confronto; ao contrário do que aconteceu nos outros dois países sujeitos ao jugo católico e a leis anti-escolha, anti-mulheres e anti-direitos humanos no campo da sexualidade e reprodução - a Irlanda e a Polónia.

À primeira, poderíamos pensar que a decisão é de confrontação. Mas tal só seria possível se PSL e PP contassem com forte apoio social e/ou eleitoral. Eles sabem que não. O que vem aí, então? Provavelmente a "solução à portuguesa": satisfazer a direita medieval no primeiro momento, e logo "ceder" um pouco para parecer "moderno". PSL já deu a entender isso, ao "elogiar" a absurda proposta de Freitas do Amaral. E hoje, o Expresso online noticia que o CDS está disponível para desvincular o PSD do acordo eleitoral anti-aborto (o órgão da oligarquia portuguesa faz disto uma notícia em letra grossa, só depois seguida, em letra pequena, da notícia da proibição da entrada do barco...).

Já se está mesmo o que é que vai acontecer: uma "solução" de meias-tintas, com a continuação da proibição do aborto e uma "simpática" alteração legislativa que tornará inexequíveis as decisões dos tribunais de condenarem as mulheres. No fundo, o equivalente político da hipocrisia nacional face à sexualidade, ao controlo da reprodução e às mulheres. Apoiada por muita gente, desde logo aquelas mulheres que, com o auxílio erotizante das revistas cor de rosa, sonham dormir com um primeiro-ministro não-eleito e, caso se torne necessário, serem por ele conduzidas a 200 à hora, A-6 fora, até à Clínica dos Arcos em Badajoz, a mesma que tranquilamente anuncia os seus serviços nos jornais portugueses. (Depois do desmancho, um beijinho terno - a palmadinha no rabo é para outras circunstâncias -, um cheque para pagar a conta, e um jantar numa pousada do Alentejo, que as mulheres também têm que comer).

Só espero que as Women on Waves e os promotores portugueses decidam confrontar o governo, insistindo em entrar em águas nacionais e fazendo-se deter. Para que a vergonha seja conhecida em todo o mundo e não se fique, à "nossa" maneira, no segredo das casas, no segredo das famílias, no segredo dos casais - esse imenso arquipélago de campos de concentração com naperons de renda que sustenta a existência triste, apagada, bisonha, resignada e sofrida da maioria das portuguesas.




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