OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


16.8.04  

Minha Nossa Senhora!



A única coisa chocante no caso das casas de banho de Fátima é o facto de o Expresso ter feito disso uma história - e para mais de primeira página.

É entendível que os responsáveis do Santuário de Fátima se mostrem "indignados", na medida em que partilham de uma ideologia que vê o sexo livre (mais ainda se gay) como "pecado". Também os vegetarianos enjoam com o cheiro de carne. Nada de especial aí. Seria (será?) aceitável que, no espaço gerido pela icar, se permitam e se proíbam certas actividades. Do mesmo modo que um vegetariano terá dificuldade em ver um hóspede cozinhar um hamburger na sua frigideira de uso quotidiano. É também entendível que o sexo, enquanto actividade física entre corpos, não seja feito em público, apenas pela mesma razão que não se acha aceitável estacionar em cima dos passeios (oops, mau exemplo), cuspir no chão, ou fazer barulho depois da meia-noite. Qual é essa razão? Não fazer coisas que perturbem os outros e cujo evitamento não nos coloca numa injusta desvantagem ou privação.

Mas há uma ou duas coisas que convém não esquecer: a primeira é que as casas de banho (além de não estar claro se são do Santuário, se da Câmara...) são espaços semi-públicos, pois têm zonas de privacidade. E ninguém é assaltado sexualmente numa casa de banho. Só "alinha" quem quer; quem quer não "alinha". "Engate" não significa necessariamente sexo-logo-ali; e sexo-logo-ali não significa necessariamente à vista de todo e qualquer um que entre nos servicios. A segunda é que "pedir desculpa" pelo comportamento de gays armariados ou de fãs do engate de casa de banho em nome da boa imagem dos gays é algo que não me interessa. As pessoas fazem rigorosamente o que querem, desde que o façam sem violar o consentimento do(s) outro(s). O engate de casa de banho pode ser como cuspir no chão (ver exemplo acima). Mas pode perfeitamente não ser.

A Igreja pode, em coerência com o seu discurso, sentir-se "indignada". Mas as autoridades não têm nada que interferir com o que se passa nas casas de banho em termos de engate só por causa da indignação da Igreja. Imaginem que algum morador de Fátima se ia queixar por se sentir indignado com a constante propaganda, feita pela icar, de superstições e irracionalidades, através de imagens, peregrinações, locais de culto, lojas de souvenirs, discursos nos altifalantes, etc.?

O Expresso decide fazer disto notícia de primeira página. Esse facto é que merece análise. É a perpetuação do estereótipo do gay promíscuo e lúbrico por parte de um jornal cuja homofobia é patente e comprovada nos editoriais do seu staff - com a honrosa excepção da revista da secção cultural (já esqueci o nome, não compro o semanário há dois anos). Mas a reacção a esta estratégia não deve ser de virgem ofendida. Não vale a pena pôr bálsamo (hint, hint) na ferida. Deve ser bem mais radical, colocando a seguinte contra-pergunta: e que problema é que tem, em termos do nosso contrato social, se há pessoas que gostam de ter muitos parceiros ocasionais, inclusive engatados em casas de banho?

PS: Já por várias vezes exprimi a minha radical discordância com muitas posições tomadas pela Opus Gay e o seu efeito no movimento lgbt. No entanto, acho que a OG está no seu pleno direito ao divulgar locais de engate no seu guia. E nem sequer tenho nada contra.


mva | 19:47|