OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


16.8.04  

LIDO.



O escritor brasileiro Adolfo Caminha publicou Bom-Crioulo em 1895. O romance trata do amor entre dois marinheiros: um ex-escravo e um jovem efebo louro. Na tradição naturalista e positivista, Caminha pretende retratar a homossexualidade como uma perversão. O mais curioso é que, ao descrever o desejo e as complicações amorosas, acaba por descrever emoções, sentimentos, gestos, etc., que poderiam ter lugar entre um homem e uma mulher. Em suma, o que torna "perversa" a relação é simplesmente o sinal do sexo de cada amante. Nota-se que, de certo modo, Caminha percebeu isso e introduz, para tornar a narrativa mais dramática e menos baseada no "pacto homofóbico" com o leitor, outros sinais de diferença: a raça, a idade, a hipermasculinidade e a efeminação. Isto resulta numa coisa curiosa: perante os nossos olhos contemporâneos, é um desfile dos artifícios construídos pela homofobia para mal-descrever a experiência homossexual.

Curiosamente, pela mesma época - em 1891 - o escritor português Abel Botelho publicava O Barão de Lavos, na mesma linha naturalista e positivista (a série chamava-se "Pathologia Social"(!)) e também sobre "homossexualidade". Desta feita, a diferença racial é substituída pela diferença de classe, mantendo-se, todavia, a diferença de idade. O que faz pensar noutra coisa: o discurso da homofobia, enquanto discurso claramente patriarcal, não consegue retratar as relações de amor e sexo sem ser como relações de desigualdade e poder (de facto e não apenas como jogo erótico...).

mva | 18:43|