OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


19.8.04  

Filosofia de fim de tarde.

Será possível ser racional sem ser frio e cínico? Será possível ter uma ética para a vida sem prescindir de uma poética?

Vivemos rodeados de pessoas que falam da lógica das carreiras, que falam do sucesso, da fama. Pessoas que falam de esperança, de sorte. Pessoas que falam de , de crença. Pessoas que acreditam em horóscopos. Pessoas que se fazem consumindo mais do que produzindo. Pessoas que elogiam o auto-interesse e o egoísmo, assim como pessoas que exageram na defesa da abnegação e do sacrifício. Pessoas que vivem para os amanhãs que cantam e as utopias, ou para a ordem e a tradição.

Todas as expressões em itálico parecem-me ridículas. Ou enganadoras. Ou falsas. Vivemos um tempo que mistura de forma eficaz (terrivelmente eficaz) duas coisas opostas: uma espécie de hedonismo auto-gratificante com uma espécie de espiritualidade new age cheia de anjos e rebuçados. A espiritualidade dominante não é espiritualidade, é bricolage de seitas e modas. Assim como a suposta racionalidade dominante não é racionalidade, mas sim uma fé economicista no mercado que se (re)apresenta como racional.

Respondendo às perguntas iniciais, um exemplo: uma pessoa querida tem morte anunciada. Hipóteses: 1) desesperar, achar que é a pior coisa do mundo, que só pode acontecer a nós (e à pessoa...) e entrar em depressão, deprimindo também o moribundo; 2) iludir, recorrendo a rezas e santos e virgens e reencarnações e espiritismos, assim protelando a questão (ou acreditar piamente que há um médico - ou um bruxo - algures que resolverá o problema). Mas há outra: perceber que a ameaça de morte não é ainda a morte; que a pessoa está viva enquanto estiver viva; que o tempo de vida que lhe resta deve ter qualidade, pouca dor, deve servir para balanços e para recuperar tempos perdidos. Prefiro a terceira.

E a terceira é racional e poética ao mesmo tempo. Porque identifica certas emoções e sentimentalismos como perniciosos para... o bem-estar emocional. Porque não mente. Porque não elabora hipóteses para lá do conhecimento vivido. Porque joga com os dados que há, com o possível. É poética e emotiva porque racional; é racional, porque ajustada à poética e ao bem-estar emocional.

A dicotomia racional/emotivo (e as suas equivalências e analogias, como masculinidade e feminilidade, força e fraqueza, frio e calor, etc.) é uma armadilha estúpida.

mva | 21:41|