OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


3.8.04  

De que é feito um regresso?

De que é feito um regresso? Bem, de uma espécie de inversão do vir à tona de água: deixa-se a tona de água e mergulha-se nas profundezas.

Não serei o primeiro a dizê-lo: liga-se a TV e tem-se o flash negativo de ver PSL como primeiro-ministro. Não eleito, mas primeiro-ministro. Isto deve ser como as adaptações à mudança: quem, há uns dez anos, imaginaria que tal seria possível? Aliás, admissível? E por via das circunstâncias que conhecemos: a fuga de Barroso, a tibieza de Sampaio, a moleza do país? Não esqueçamos nunca, não nos adaptemos. Pela parte que me toca, PSL será sempre referido como "o primeiro-ministro não-eleito".

Por breves dias achei que o Público tinha mudado de linha editorial. JMF apresentou-se duvidoso, no mínimo, em relação a PSL. Provavelmente por via dum neo-conservadorismo que suspeita (ainda, e graças a d_ _ _) dos arrivistas. Mas hoje o ilustre director faz um editorial onde, em vez de atacar o vaticano, ataca quem reagiu ao último diktat daquele estado ditatorial masculina, desta feita sobre género. JMF acha que o feminismo exagerou, que homens e mulheres são diferentes e, para sustentar o argumento, refere um "estudo": igual número de rapazes e raparigas foram enviados para um bar para serem convidados, por outros tantos rapazes e raparigas (tudo pressupostamente heterossexual) a terem uma noite de sexo. Noventa por cento dos rapazes aceitaram os convites, contra dez por cento das raparigas. JMF acha isto esclarecedor (hello?). E, como se não bastasse, invoca a autoridade da evolutionary psychology que, como toda a gente sã sabe, é uma obscura seita de geeks com ar de progressistas mas defensores de reaccionarices do século dezanove. Não ocorre a JMF que as diferenças entre um homem e um homem (ou uma mulher e uma mulher) são maiores do que as diferenças médias entre todos os homens e todas as mulheres. Ah: o editorial não aparece na versão on-line: algum informático com bom senso vai ser despedido amanhã....

Um comentador deste blog (acho que "jpct") dizia há dias uma frase genial. Algo como: "hoje, os radicais é que parecem moderados e os moderados radicais". Espero que me estivesse a incluir no pacote, porque acho a descrição etnograficamente correcta. Se virmos o radicalismo como um conjunto de gestos bruscos e perigosos, os radicais são os neo-conservadores de hoje; e os moderados são os que se definem politicamente como radicais, pois vêem-se na posição de defenderem certas conquistas do humanismo, da social-democracia, do estado providência, das lutas emancipatórias, dos direitos humanos, etc. Humm, isto é perturbador...

A nossa querida TV Cabo - o monopólio-que-não-é-monopólio - tem vindo a cobrar 2 euros a toda a gente pelo canal Action. Só quando se telefona a pedir reembolso por este "erro informático" (é assim que eles definem o assalto) é que eles pedem desculpa e (supostamente) iniciam o reembolso. Fizeram-nos isto (cobrar indevidamente), mesmo depois de terem telefonado a perguntar se queríamos aquele canal (a resposta foi não, bem como, pela enésima vez, em relação aos canais porno, por serem estritamente hetero).

E agora coisas boas.

Uma coisa boa no regresso à cidade: a certeza de que vamos ao concerto da Madonna, compradinhos que estão os bilhetinhos. Bem sei que a indústria pop é a indústria pop: é suposta fazer dinheiro. E bem sei que uma das formas de fazer dinheiro é jogar com os desejos radicais das pessoas. Madonna é um produto disso. Há que ver criativamente como o mercado pode ser um espaço relacional de disputa, conflito e apropriação. Tudo bem. Mas não deixa de ser triste ver na TV as entrevistas a jovens que fizeram bicha para comprar os bilhetes: entusiasmados com Madonna, com p seu potencial de provocação, mas eles mesmos com um ar submisso ou, quando muito, adequado aos ditames de uma moda supostamente subversiva. A minha crítica não é tanto ao "sistema" e ao "mercado", mas sim a estas pessoas: porque não se revoltam, em vez de apenas consumirem os símbolos da revolta?

Descobri, só agora, que As Minhas Histórias tem um alter blog, o Mythologias. Na epígrafe, referência a Os Despojados, de Ursula LeGuin, simplesmente uma das minhas escritoras de sci fi favoritas. Aliás, Ursula é filha do grande e clássico antropólogo americano Alfred Kroeber, o que cria uma afinidade electiva.... Ursula consegue, nos seus romances, abordar simultaneamente a questão da alteridade e conflito culturais, e a questão do género e da sexualidade. Os Despojados (The Dispossessed: An Ambiguous Utopia) é um genial fresco socio-político; em The Left Hand of Darkness, os habitantes do planeta só têm um sexo (mais não conto: as consequências são belíssimas...); e usei The Word for World is Forest em muitos anos de Introdução à Antropologia, já que é basicamente uma sci fi feita a partir de um estudo sobre os Pigmeus da África central. Bem, um dia tenho que escrever sobre a Ursula com mais tempo...

VISTO. Harry Potter, o último. Cuadrón melhorou, e muito, a série, se bem que o filme poderia perfeitamente ter menos vinte minutos, meia hora. Para quem, como eu, nunca gostou do género fantasia (a Ursula também o faz e esses livros não gosto...), é obra que consigam fazer com que goste dos Potters. Agora tenho que me concentrar e inventar um Potter qualquer, escrever uns livritos e ala que se faz tarde para ser mega-rico como a senhora-como-é-que-se-chama.

Este Verão de Zamba foi (tem sido, porque vai tornar a ser...) maravilhosamente preguiçoso. Um dos efeitos da preguiça é o jogo de palavras: a mente deambula e vai juntado pedaços e inventando coisas como nos sonhos. Fui muito influenciado pelo Boris Vian inventor de neologismos e criador de híbridos "palavrais", sobretudo em A Espuma dos Dias. Acho que me saí bem com o "patridiota", para referir o tipo idiota de patriota. Tenho outras na manga e um dia destes devia fazer um glossário. Mas outro dia vi-me aflito: ao nosso lado estava um grupo formado por aquela espécie particularmente detestável que são as pessoas muito livres, muito esquerda, muito intelectuais, mas que vivem bem com o poder (e do poder...). Têm todos os tiques dos betos, todos os defeitos dos marialvas e dos pequenos poderosos. Mas acham que não, que são livres-pensadores, que merecem toda a consideração, de tal maneira são a "consciência" da sociedade. Resultado: são malcriados e brutos como o mais malcriado e bruto betão de jeep. Mas, oh musas, não consegui dar-lhes nome! O P chama-lhes "betos de esquerda". Se empurrasse o "esquerda" para "esquerdalho", talvez desse betalhos. Mas não me satisfaz. Sugestões?

Bem, para post a coisa já vai bem empostada (ah!). Agora tenho que ir fazer sopa, lasanha e salada de frutas. Até amanhã.

mva | 20:46|