OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


29.7.04  

Escolinha de Verão.

Vou ter que adiar uma resposta mais sustentada às reacções ao post sobre nacionalismo. Nem o clima da Zamba nem a lentidão da net local permitem mais. Mas não posso deixar de deixar uma deixa (!) sobre o (extenso!) debate que acontece aqui ao hiper-lado a propósito do post sobre o Manifestário.

E o que me ocorre é um back to basics, dedicated to Nuno Santos. Às vezes o melhor é começar pelas bases:

Ninguém nasce hetero ou homo. As pessoas são construídas hetero ou homo (assim como são construídas como homens ou mulheres, em termos de género). 'Construídas' não quer dizer que haja um complot, com agentes conscientes (embora também os haja). Quer dizer que há modelos complexos, de relações, instituições e símbolos, que empurram as pessoas para certas práticas e discursos (que, no caso da sexualidade, redundam, entre outras coisas, em orientações).*

Acontece que a heterossexualidade, como sistema complexo que é (político, social, etc, e não estritamente 'sexual', até porque o estritamente sexual provavelmente não existe...) é não só dominante, como é mesmo hegemónica. Não admira, pois, que a maioria das pessoas sejam hetero.

Mas a heterossexualidade faz parte de um sistema. Qualquer sistema simbólico é feito de oposições: a heterossexualidade só existe na medida em que define uma sua negação. E essa negação é a homossexualidade.

O que é que isto quer dizer? Que a homossexualidade também é uma orientação definida pelo sistema em que vivemos, logo uma orientação disponibilizada às pessoas. Daí que haja, também, homos.

Mas: o sistema não estabelece uma simetria, mas sim uma assimetria. Isto é, a homossexualidade é vista como negação negativa e subordinada da heterossexualidade. Daí que, por um lado, seja possível algumas pessoas acederem à homossexualidade (ela está presente nos discursos sexuais, no leque de possibilidades da estrutura social-sexual), mas que sejam uma minoria as pessoas que o fazem.

E agora a porca torce o rabo: fazem-no em condições de desprivilégio.

A nossa luta não é (isso seria uma luta pela utopia, coisa a que pessoalmente não estou disposto por falta de tempo... de vida) pelo fim do regime sexual que define o binómio hetero/homo, mas sim pela saída da homossexualidade da situação subordinada.

Uma das principais formas de isso ser feito é usando os símbolos da própria opressão, invertendo-lhes o sentido, transformando o vergonhoso em fonte de orgulho, dando a ver o que os outros querem ocultar ou voyeuristicamente usufruir, transformando a identidade negativa e subordinada em identidade positiva e tendencialmente hegemónica (toda a gente tornar-se um pouco gay...). As mulheres fizeram-no, os negros fizeram-no, nós estamos a fazê-lo.

Daí as marchas, daí a coragem de travestis, transexuais, drag queens, de gays e lésbicas 'promíscuos' ou de gays e lésbicas que 'passam' por heteros e vivem em relações monogâmicas. Ou dos Nunos Santos que podem perfeitamente vir às marchas dar uma mãozinha.

Peço desculpa pelo paternalismo (sou prof, que querem?), mas isto ajuda?

*'Construção social' é um processo complexo, com inúmeros actores, imensos 'cordelinhos' e mecanismos de suporte. A pessoa 'construída' como homo ou hetero passa a ter essa característica como uma disposição, algo que não se desfaz pela simples vontade da pessoa ou de um terapeuta (uma vez que não foram eles que construiram). É completamente desonesto inferir a partir da teoria construcionista que as pessoas possam mudar de orientação sexual através de 'curas'. O que tão-pouco significa que a orientação sexual seja inata.


mva | 20:10|