OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


21.7.04  

As tribos de Marselha.

Em Marselha estavam cerca de 300 LGBTs, distribuindo-se por muitos seminários, workshops e actividades paralelas. Deu para perceber as linhas divisórias não só políticas como identitárias. A primeira é a que opõe lésbicas a gays, marcada pela necessidade das primeiras de serem mais afirmativas na sua visibilidade face a uma clara hegemonia masculina, que decorre de razões sociais mais vastas. A segunda é a que opõe as pessoas, sobretudo mulheres, que se reclamam de feministas e aquelas, sobretudo homens, que não sabem sequer o que quer dizer. A terceira é a que opõe os 'politizados' aos não politizados, i.e., entre quem insere a política sexual em questões mais vastas de poder e discriminação e quem tem uma perspectiva mais identitária. A quarta é a que opõe as pessoas envolvidas no lobbying mainstream, como por exemplo os responsáveis da ILGA Europa, e os radicais, politizados à esquerda, como as Pantheres Roses. A quinta, replicando de certo modo a quarta, é a que opõe as pessoas pragmatistas ou reformistas, preocupadas com as conquistas e a negociação, às pessoas revolucionárias ou utopistas, preocupadas com a alteração geral da ordem das coisas (patente no debate entre quem acha o casamento uma instituição opressora e quem acha que o acesso de LGBTs ao casamento é um direito civil).

Como é evidente, só por razões de clareza de pensamento é que estas oposições são separáveis. Na realidade, elas sobrepõem-se. E, por outro lado, são quse sempre graus de cinzento e não oposições a preto e branco.

Mas outras linhas divisórias ficaram patentes. São aquelas que têm mais a ver com estilos de vida (não deixando de ser políticas): forte mesmo é a oposição entre os apologistas do bareback e os militantes da Act Up que os acusam de criminosos irresponsáveis; outra é a que opõe as pessoas que preferem múltiplos parceiros e relações abertas, versus pessoas que preferem relações monogâmicas; outra ainda é a que separa pessoas que gostam de concordância de género versus as que gostam de gender fucking, com formas várias de travestismo ou drag queenismo, permanente ou ocasional. Curiosa ainda foi a feroz presença de surdos, que levou à exigência de traduções simultâneas em todas as sessões e a queixas de discriminação interna no movimento. Se a tudo isto juntarmos divisões transversais de classe, etnicidade, nacionalidade, gosto, religião (complicados, os Católicos do grupo David e Jonathan versus o humor das Soeurs de la Perpetuelle Indulgence... - e ver as originais americanas) vemos como o universo LGBT é de uma diversidade imensa. Curiosamente, em Marselha havia uma ausência gritante de LGBTs árabes e/ou muçulmanos, justamente numa cidade e país onde constituem (os árabes e muçulmanos) uma enorme comunidade. A tratar da área só estava o Adnan Ali (anglo-paquistanês, o que é toda uma outra coisa face a um magrebino francófono...), da associação Al-Fatiha (e, curiosamente, companheiro de um português, que visita na terrinha todos os fins de semana...)

Daí alguma sensação de estranheza identitária quando se está durante uns dias num meio assim. É que, como dizia a minha pessoa favorita, o que nos une é a luta contra a homofobia, e o resto, diria eu, até pode afastar-nos (deliciosamente e sem drama). No limite - e nos dias em que estou mais irritado - há tantas sexualidades quanto pessoas. No limite, limite, eu sou miguelsexual...

mva | 12:36|