Eu nem queria falar do assunto. Não queria estragar a festa de amanhã pelas bandas do Cabo do Bacalhau, no outro lado da Grande Poça. Mas a reportagem de Felícia Cabrita na Grande Reportagem do DN (e na SIC, outro dia) não pode passar despercebida. Não há liberdade de opinião, nem critério jornalístico que justifique a completa ausência de noções básicas de cidadania, igualdade, democracia e pluralismo no trabalho de Felícia Cabrita. É simplesmente repugnante que a reportagem confunda homossexualidade com pedofilia e com a introdução da sida em Portugal. Poderia FC vir dizer que "factos" são factos: que aqueles homens californianos são homossexuais (sim, e depois?, qual a relevância desse descritor?; que tiveram sexo com rapazes da Casa Pia e que isso é pedofilia e homossexualidade (wrong! O verdadeiro problema (e crime e nome para a coisa) é o abuso sexual de menores), e que os casos de sida surgiram em casapianos depois disso (um maravilhoso salto lógico, para mais alimentador da noção xenofóbica de que a sida é uma coisa do Outro e que só poderia ter chegado até nós, os Puros, através da "contaminação" do estrangeiro; só falta descobrir que os californianos eram judeus...).
O espírito justiceiro de que FC se tem vindo a auto-investir, por provável e louvável empatia com os mais explorados (e contra o sistema clientelar, patriarcal e hipócrita de que beneficiam as nossas "elites"), não justifica nem por um segundo a ajuda que dá à perpetuação da homofobia. Com certeza que Felícia Cabrita conhece (e se calhar é amiga de) homossexuais que não vêem a sua sexualidade como "um vício", que não são pedófilos, que nem sequer recorrem à prostituição e que provavelmente tomam muito mais cuidado com a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis do que muitos heteros. Mas faz o "erro" clássico de estabelecer, na sua mente, uma distinção: esses são os meus amigos,com nomes próprios, os outros são os monstros, os que cabem na categoria tenebrosa de "homossexuais". É esta distinção que reproduz a homofobia entre os grupos, classes e profissões que, como os jornalistas, mais obrigação tinham de serem promotores de uma cidadania rigorosa.
Precisamos de nos zangar, e muito, e com muita força. E Felícia Cabrita precisa, no mínimo, de escrever uma nota no DN onde peça publicamente desculpas (não o teria feito se, por exemplo, o seu artigo tivesse um teor antisemita, por inadvertido que fosse?) às pessoas ofendidas - os homossexuais concidadãos de FC - e vêem as suas dificuldades quotidianas exacerbadas pelo apoio de artigos deste teor (porque nem todos os homossexuais são diplomatas, Felícia: há-os absolutamente desprovidos de poder, do canalizador ao jovem dependente dos pais).
E o DN, ou a Grande Reportagem, precisam de fazer o mesmo. É que já chega: estamos no século XXI, num país da União Europeia e vocês, Felícia Cabrita e responsáveis da GR e do DN, não são obscuros redactores de obscuras folhas paroquiais: vocês são a elite deste país. E numa democracia isso significa acrescida responsabilidade na defesa da cidadania.
Finalmente, uma sugestão de férias para FC: pegue num avião para Boston; alugue um carro e vá até P'Town. Vá à praia, sente-se num café, leia o jornal local, fale com as pessoas, vá a um casamento. Vai ver que no regresso terá percebido que a sua arma - as palavras - são a coisa mais poderosa que há. A usar com extrema cautela.