OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


28.5.04  

A esquerda de cácárácá.

Tive acesso a um inquérito feito no Parlamento Europeu. Nele, o deputado socialista António Costa - um dos candidatos nas eleições cuja campanha começa agora - discorda da possibilidade de casamentos lgbt e da adopção por lgbts.

Há um certo liberalismo de esquerda face à política da identidade que me irrita. Chamo a isto a esquerda de cácárácá: retórica simpática mas impotência completa no pensamento radical e na acção consequente. É comum encontrá-lo, por exemplo, no PS e no PC (e não só...) e em muitos movimentos sociais e opinião pública em Portugal. Quais as suas características? Em primeiro lugar, na questão de género, uma defesa da igualdade de direitos, mas uma aceitação do género como princípio de "diferença": let women be women and men be men. Isto resume-se nas tontices sobre a beleza de "ser feminina apesar de feminista"; ou na reprodução da ordem do género quando se propõe, com supostas boas intenções, apoios do estado para que as mulheres possam ficar em casa ou no sentido de diminuir o seu tempo de trabalho (não lhes ocorrendo que possam ou devam os homens fazer o mesmo). Normalmente isto prolonga-se na aceitação acrítica de conceitos de feminilidade e masculinidade essencializados, que redundam na "necessidade das crianças terem um pai e uma mãe" quando chega à questão da adopção por homossexuais... Em segundo lugar, as manifestações de boas intenções sobre os direitos lgbt e a luta contra a homofobia param - e entram numa contradição insanável que eles se recusam a ver - quando surgem os famosos "interesses das crianças" como ressalva para a adopção (assim como o argumento do "egoísmo gay e lésbico" quanto à reprodução - como se o desejo hetero de ter filhos não pudesse, segundo essa "lógica", ser também acusado de egoísta...); ou a resistência à ideia de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Há nisto uma implícita noção de que há uma falha nos homossexuais e lésbicas, uma ideia que se aproxima perigosamente das noções católicas sobre os homossexuais como pessoas com um problema e que, não devendo ser discriminadas explicitamente, devem refrear-se e aceitar a menoridade de direitos. Mas há um terceiro ponto interessante: esta esquerda vê-se como anti-racista e não aceitaria por um minuto que houvesse leis baseadas na ideia de menoridade ou inferioridade racial. No entanto, esta esquerda (e as origens multiculturais de António Costa deviam levá-lo a reflectir sobre isto) esquece-se que o racismo não é apenas o preconceito de cor, é algo que já foi regulado legalmente: com a proibição de casamentos entre pessoas de "raças" diferentes, com a proibição da miscigenação por ser vista como algo de degenerativo, com proibições de exercício de profissões, voto e direitos por causa de supostas falhas constitucionais (biológicas, etc) das raças inferiores. Não percebe esta esquerda que é exactamente isso que hoje faz em relação quer às suas noções essencialistas de género quer em relação à limitação dos direitos lgbt?

mva | 19:16|