OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


25.5.04  

Cerejas e alcatrão.

Saio do dentista, no Saldanha, e decido ir a pé até ao ISCTE, na Cidade Universitária (enfim... chama-se assim). Gosto de caminhar, sobretudo por avenidas largas e planas. Gosto, sobretudo, de flanar - de ver as pessoas anónimas, as montras, os prédios, sentir os sons, o ar e, mais que tudo, o feeling duma cidade. Uma sensação que se tem em Paris ou Barcelona (mas bem mais difícil de ter em Londres ou Roma, por exemplo). A ideia de cidades planeadas agrada-me mais do que a ideia de cidades "orgânicas". Agrada-me a racionalidade dos traçados rectilíneos, da sensação de domínio da natureza, de herança greco-romana, de iluminismo. Bem sei que estas coisas estão mal cotadas nos pós-modernos tempos que correm (mas será que ainda correm, esses tempos?). Pouco importa, outras modas se seguirão. As cidades "orgânicas" só se aguentam ou em turismo breve (quando são sentidas como "exóticas") ou se tiverem por trás um tecido social com exigência de decência (penso, respectivamente, em Nápoles e Copenhaga (ou Amesterdão)). Se não se permanecer e criar relações com pessoas, tornam-se insuportáveis; já numa cidade "contratual" qualquer um pode sentir-se bem - e ainda por cima criar também relações humanas.

Mas não é na Av. da República - ou em qualquer outra lisboeta - que posso ter essa sensação. A minha caminhada virou rapidamente tortura. Lixo, lixo, lixo. E cheiro a lixo, um cheiro que se está a tornar no cheiro de Lisboa e na causa provável da maior densidade de alérgicos que conheço; pedacinhos de Paris-nos-trópicos (alguns prédios dos inícios da abertura das avenidas novas) misturam-se com pedaços de Kinshasa; os passeios são estreitos, pejados de obstáculos, eternamente escavacados por causa da (in)famosa calçada à portuguesa e magoam os pés por causa dos constantes desníveis; as árvores definham; e há carros, muitos carros (paradoxalmente, haver muitos carros não é sinal de desenvolvimento; é justamente o contrário).E a fauna humana - eu incluído, que isto não é um post elitista... - nem se apercebe de como o seu ar triste tem a ver com "isto" que deixaram acontecer. Quando a famosa luz de Lisboa acontece, esquece-se um pouco "isto"; mas em dias cinzentos como o de hoje, a feiura grita. Olhem bem, da próxima vez que passarem por uma avenida lisboeta (até a da Liberdade, hoje em dia): não são simplesmente horrorosas? E não se poderia dizer que onde medra a feiura não pode medrar a democracia (com D grande)?

Viro para a 5 de Outubro. Apenas ligeirissimamente melhor. Numa esquina, um lugar de fruta sobrevive e vende cerejas. As primeiras do ano? Mesmo em frente, vários buracos no asfalto estão a ser tapados com alcatrão. As bolinhas laranja-avermelhado, luzindo debaixo do céu cinza, e o cheiro acre a alcatrão, negro e pegajoso. É o que fica de meia-hora de flanagem lisboeta.

mva | 12:13|