OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


22.5.04  

Auto-análise de sábado de manhã.

Se alguém como eu gozar com a boda real espanhola é provável que alguém diga que se trata de snobeira de esquerda ou intelectual. Se perder tempo a ir ver um filme como Troy, é provável que alguém se admire com a escolha, com a demonstração de mau gosto ou com o facto de não ter boicotado um produto "americano". Acho este um tema curioso para pensar.

Acontece que ao mesmo tempo que gozo com a boda, vou acompanhá-la. Não por "interesse sociológico" ou "para me manter actualizado", mas sim porque gostarei de ver um bocado. Se estiver em casa, não vou manter a TV desligada de propósito e pegar no último livro do Saramago (o exemplo também não é lá muito bom...). É como poder gostar (e gosto) de ouvir uma música pimba, de ver um show de travestis cheio de estereótipos de género num bar gay (pimba camp), ou o festival da Eurovisão (pimba chic). No exemplo do Troy, vou ver coisas desse tipo sabendo à partida que não serão... grande coisa. Mas vou motivado pelas referências peplum, por referências do meu imaginário infantil e juvenil e, sim, porque pode ter graça ver a rapaziada semi-despida com mini-saias de couro...

Tudo isto para dizer o quê? Que há algo de horrível na coerência total, em ter um estilo, estética ou ideologia completos e herméticos. Somos processo e contradição. Somos feitos de influências as mais variadas. E somos capazes de ao mesmo tempo gostar de e criticá-lo. E em vez de sofrer com isso, prefiro deleitar-me com isso. Fico mais leve (um princípio hedonista)e sinto-me mais honesto (um princípio moral).

(Um exemplo mais hard: Também não vejo pornografia por "interesse sociológico", mas porque me excita. Mas tão-pouco passo a vida a ver pornografia; e ela não me impede de ver/ler outras coisas, que me "excitam" a outros níveis).


mva | 10:31|