OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


4.4.04  

O Bloco nas Docas.

Acho que o chamado movimento anti-globalização tem imensas virtudes: na forma como se mobiliza, nas múltiplas agendas que defende, pelo facto de não se basear numa forma-partido e muito menos numa Internacional, e pelo próprio facto de ser global. Mas acho que chamar-lhe "movimento dos movimentos" cheira a messianismo político. Cheira a vontade desesperada de encontrar um "sujeito da História" por parte de quem viu desaparecer o "proletariado" ou a adaptação suavizante desta expressão a "trabalhadores", incluindo todo o tipo de assalariados. Rigorosamente nada no movimento anti-globalização indica que ele revele ou constitua um "sujeito histórico". Pior ainda quando o tal sujeito é entrevisto como sendo a "multitude", palavra cujo conteúdo é em si mesmo assustador. Mas se existe um "sujeito", deve existir uma acção.

Segundo Bertinotti, ontem na Festa do Bloco, e segundo o meu amigo Miguel Portas, essa acção é, nem mais, a "revolução". Eu percebo que o uso da expressão possa ser defendido como uma metáfora, uma imagem, parte de uma poética: a revolução seria a palavra, o símbolo para referir a transcendência do actual estado das coisas. Para o Miguel, as nuances incluem a ideia de uma revolução "quotidiana" (nas atitutdes, nos pequenos protestos, nos modos de vida - suponho), e não só a revolução como "horizonte" (i.e., a velha ideia comunista teleológica, da transformação total do mundo num dia no futuro). Misturam-se aqui várias tradições: a comunista propriamente dita, a situacionista do Maio de 68 (revolução nos hábitos e atitudes) e até a ideia de "revolução permanente".

Tudo isto parece muito bonito, mas não me agrada. Não porque me perturbe esteticamente ou porque o Bloco tenha que me agradar pessoalmente - coisa que, naturalmente, não tem a mais pequena importância para os outros - mas porque me cheira mais a reciclado do que a novo. Por exemplo, a forma como Bertinotti inventa um "nós" que inclui feministas, gays, ecologistas, etc., é uma fantasia: não só o movimento comunista sempre fez isso (juntar a si aliados de outros movimentos), como nada de menos evidente existe do que a ideia de que todos estes movimentos de política identitária partilhem de uma visão do mundo anti-capitalista, revolucionária e socialista. Basicamente as formações partidárias, participantes na democracia liberal tal como a temos, sentem que a agenda do passado já não serve (e fazem bem) e que a agenda dos movimentos sociais e identitários à sua volta lhes escapa, é caótica, desconexa, e necessitada de linha e agulhas para ser cosida.

Não gosto de dizer estas coisas, porque sei quem são, respeito e admiro muitas das pessoas que dão horas de trabalho para fazer as coisas. Fazem-no com dedicação. Refiro-me, agora, à Festa do Bloco. Achei o local feio e desagradável. Um armazém recente no Porto de Lisboa não é de todo a mesma coisa que um velho armazém abandonado onde se possa fazer uma instalação pós-moderna em cenário de arqueologia industrial. É, simplesmente, um sítio feio e escuro. Toda a estética jovem, fresca, moderna e inovadora que o Bloco já teve evaporou-se ali como por magia. Simplesmente assustador. Tão assustador como a frase "a revolução ainda é uma criançaa", totalmente descontextualizada para as gerações mais jovens, tão assustador como a linha gráfica e publicitária recente (o que é que está a acontecer ao Bloco neste campo?!). E isto não é a opinião de quem esteja a passar por "aburguesamentos" ou "desvios de direita". É a opinião de quem está a passar por questionamentos radicais e que, por isso, se assusta a ver o Bloco regredir ideologicamente. É a opinião de quem gosta de pensar que o Bloco serve para renovar a democracia portuguesa, para estimular a participação de mais e mais gente que não quer saber de "sujeitos históricos", que quer melhorar a vida sem precisar de horizontes de revolução, que vê muito mais inimigos e forças a abater do que o "capitalismo", gente que, nesse processo, pode ser politizada, i.e., que pode aprender pela prática e pela associação a outras práticas de interesses, que o mundo funciona como funciona porque as relações sociais estão organizadas de uma certa maneira e que essa maneira muda-se. E que a pior maneira de mudar é confundir tudo: revolução de Abril com revolução tout court, revolução a la comunista com revolução quotidiana à 68, etc.

Gosto de pensar no Bloco mais na linha da parte do discurso do Miguel que não resvala para a proposta de Bertinotti de um Partido da Esquerda Europeia - onde existem coisas como o Partido Comunista da Boémia e Morávia (!) (e ainda bem que o Bloco não aderiu - ainda) - mas se centra nas propostas do Bloco para as Europeias: contra o directório dos grandes países, pelo combate à pobreza, pela convergência social, por serviços públicos, contra o Pacto de Estabilidade e por um pacto do emprego, por um processo Constituinte e não pelo Tratado Constitucional.

O Bloco trouxe uma esperança política importante: trouxe esperança de alternativa face a um PS que nem à linhagem social-democrata pertence (ao contrário do PSOE, por exemplo), permeado por caciquismos, pactos de regime, catolicismos vários; e face a um PC que perdeu a História e se cristalizou. Mas se o Bloco enveredar por uma auto-definição como movimento "revolucionário" (sem dizer o que é, como se faz, em que consiste e que consequências tem essa "Revolução"), que tem por horizonte o "Socialismo" (palavra bonita, mas qual socialismo, quais os seus contornos? Se nenhuns, porque a definir nas calendas da utopia, então para quê a coisa? Então qual a diferença em relação a um messianismo?), e que tem como "sujeito histórico" um agregado difuso que faz lembrar as "massas", então qual a novidade? O odor a velho será tão grande como a ideia paradoxal de "refundação comunista" de Bertinotti. Em vez das coisas velhas se adaptarem às novas, as novas são interpretadas como variantes das velhas....

mva | 11:36|