"Trabalho sexual" é uma expressão bem feliz. Recoloca a "prostituição" num lugar sociológico e não moralista. Em tudo o que li sobre o assunto, bem como naquilo que pesquisadores me disseram, ressalta sempre que as prostitutas distinguem claramente o que é trabalho do que não o é na sua actividade sexual. Em rigor, a parte de trabalho nem cabe bem na categoria de actividade sexual. Quando se recolocam as coisas assim está-se a dizer que a prostituição é um trabalho e, portanto, que os problemas sentidos quer pelas prostitutas quer pela "sociedade envolvente" são problemas de relações laborais, de direitos e deveres sociais, passíveis de regulação, no sentido de maior igualdade e mais justiça.
Mas dois sectores opostos questionam esta posição: alguns feminismos e muitos catolicismos intervenientes na “área da prostituição”. Para os primeiros, trata-se de afirmar a prostituição feminina como uma manifestação da subordinação de género, uma objectificação da mulher, transformada em mercadoria. Para os segundos, trata-se de um aviltamento da dignidade do corpo e do sexo tanto para prostitutas como para clientes, partindo do pressuposto de que as primeiras desejariam uma situação de vida diferente.
Algumas coisas estão confundidas aqui, a meu ver. Primeiro, a prostituição pode ter a ver com a subordinação do género feminino e com o exercício da masculinidade hegemónica não pelo facto da prostituição em si mas pelas características diferenciadoras da prostituição feminina. Se virmos bem, a prostituição masculina, sobretudo a destinada a cliente femininas, é vista mais como trabalho e como um trabalho que não avilta a masculinidade dos prostitutos. Algo semelhante se passa com os prostitutos cujos clientes são homens, embora aqui o exercício de uma masculinidade homofóbica sobre o cliente (que a deseja ou não, pouco importa) ou, noutros casos, o factor de partilha da orientação sexual, também possam dar uma tonalidade voluntária e partilhada a ambas as partes do contrato. O tema de género da prostituição feminina prende-se, pois, a uma coisa de ordem mais geral, que é o próprio trabalho feminino como subordinado, subalterno, pior pago, menos regulado, etc. Em segundo lugar, o modelo de “salvação” das prostitutas não é feito em função de um modelo de mulher autónoma e não marcada pela hierarquia e assimetria de género, mas sim por um modelo de família patriarcal: “salvá-las” através da aprendizagem de uma feminilidade assexuada, reconduzindo-as de qualquer modo para o nível mais baixo da divisão do trabalho (ensinando costura, encaminhando para serviço doméstico, etc.).
Em ambos os casos, a noção de corpo e sexualidade prevalecente é baseada na ideia cristã-ocidental do corpo como templo de deus, e não como parte indissociável do eu engajado em relações de múltiplos sentidos com os outros e com o mundo. Nisto, muitas prostitutas dão-nos uma lição, pois sabem perfeitamente distinguir prazer de desprazer consoante o parceiro e consoante a relação. Se porventura sentirem prazer no acto sexual com o cliente, não é isso que deverá perturbar a distinção, pois o trabalho é cada vez mais visto como algo que deve realizar e satisfazer o individuo e já não apenas no seu sentido etimológico de sacrifício e tortura. A questão de o corpo estar a ser transformado em mercadoria, partilhada por alguns sectores feministas, de esquerda e católicos, é uma questão que deve ser mais bem analisada: o marxismo demonstrou como se mercadoriza a nossa força de trabalho. Ora, a nossa força de trabalho física, mesmo quando intelectual, é corpo a funcionar. Só um prurido de ordem moralista pode distinguir o exercício sexual dos outros exercícios físicos. A questão não está em ser ou não mercadoria, está em como se regula a compra e venda da mesma. Nisto se pode incluir a variável sócio-económica, pois a autonomia/poder duma prostituta do tipo ”escort” para hotéis de luxo é superior à de uma prostituta dependente de um chulo ou à de uma toxicodependente que se expõe ao perigo numa esquina de rua.
O “trabalho sexual” permite que a moralidade e as opções sobre os costumes sexuais sejam separadas da regulação da realidade tal como ela existe. As prostitutas existem, os clientes procuram-nas, e a relação de prestação de serviço – relação de mercadorização como qualquer outra – é feita em condições deploráveis e com grandes desníveis sociais, económicos e de saúde consoante a divisão de estatuto e classe no meio da prostituição. Trata-se, pois, de conseguir maior igualdade e mais justiça, regulando as condições do exercício da actividade profissional. Com o moralismo de fora.
É claro que existe um “mal estar” da masculinidade hegemónica que alimenta a prostituição. Mas a transformação desse mal-estar não pode ser feita pelo ataque à prostituição ou pelo seu ocultamento. Até à transformação da masculinidade hegemónica noutra coisa menos marcada pelo exercício do poder narcísico (e pela compensação das falhas do mesmo), as pessoas que se dedicam ao trabalho sexual têm o direito a exercer o seu trabalho com dignidade, segurança e inclusão – e isto independentemente de terem escolhido ou não fazer esse trabalho, no que não se diferenciam de ninguém, do apanhador de lixo ao banqueiro. No caso específico das mulheres trabalhadoras sexuais, o género é uma importante variável de subordinação, e pior é a situação se o seu capital inicial for menor, como no caso da comparação entre uma trabalhadora sexual de rua e uma “escort” de hotel.
A “questão da prostituição” é, pois, uma questão de trabalho, na qual a variável gébnero pode ter um carácter determinante.
PS: A culpa de um post tão longo é do Renas, que uma vez mais me inspirou...