OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


5.3.04  

MEDIAWATCH.
Mutilação genital feminina.

Público, e Público "última hora". A mutilação genital feminina é provavelmente o melhor exemplo dos dilemas entre relativismo cultural, por um lado, e direitos humanos universais, por outro. A maior parte dos antropólogos treme quando se lhes pede para falarem sobre o assunto. Na realidade, nem percebo bem porquê. São infelizmente muitas as sociedades onde as mulheres são subalternizadas. Em todas elas, as próprias vítimas tendem a interiorizar a hegemonia e a acharem que o que lhes acontece é não só merecido como é constitutivo das suas identidades. Mas também há duas outras verdades: que as sociedades e culturas mudam e que nunca existe consenso pleno. Em todo o lado, a informação e modelos disponíveis não são apenas os locais, pelo que é legítimo falar de uma tensão criativa entre particularismo e universalismo; por outro lado, em todo o lado existem pessoas que, devido à multiplicidade de percursos biográficos e ao facto de todos termos muitas identidades nem sempre consonantes, resistem, não gostam e não aceitam o que lhes é imposto. Em todas as sociedades se disputam poderes e autonomias - é isso a política.

Em antropologia não se confunde já relativismo cultural com relativismo moral. Da mesma maneira que não se dicotomiza tradição e modernidade, nem se faz o panegírico de uma ou outra. Tão-pouco se aceita sem mais nem menos que o universalismo seja necessariamente de raíz ocidental - aliás, ele só será universalista se for feito na base de consensos mínimos entre tradições (no sentido histórico) diferentes, e que são muito mais parecidas do que os fundamentalistas e os particularistas querem fazer crer.

Certos desejos de justiça podem esconder formas de exclusão. Ainda bem que o CDS não conseguiu tornar específico o crime de MGF - que continua a caber na categoria de ofensas corporais. Mas ainda bem que há mulheres que resistem à MGF e promovem mudanças culturais nos contextos onde ela se pratica: porque não acham normal serem mutiladas, porque acham mal serem mutiladas - como, no Ocidente de há 100 anos, as mulheres que saiam à rua para exigirem o direito de voto. Dessas mudanças não sairá necessariamente a ocidentalização, mas sim uma nova formação cultural, votada, por sua vez, à transmutação noutra coisa qualquer.

mva | 16:02|