OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


5.3.04  

Bom senso e radicalismo.

Nota-se imenso, ultimamente, uma retórica do empastelanço: do director do Público aos moderadores e comentadores televisivos, passando pelos políticos da maioria e opinadores, não cessam os apelos ao "bom senso", à "razoabilidade", à "moderação", e as críticas ao "radicalismo", ao "exagero". Isto chega ao ponto de classificar como pecaminosa qualquer coisa que cheire a "partidarização", quando não mesmo "politização". Invariavelmente, quem faz o apelo situa-se num dos lados dos argumentos, por acção ou omissão (seja o assunto o aborto, a adopção por homossexuais ou qualquer outro do domínio da "moral"). Como a maior parte das pessoas é bombardeada pela demagogia tablóide dos jornalecos-que-mais-vendem ou da TVI e SIC, o apelo é bem recebido. Só que os tablóides, a TVI e a SIC estão claramente do mesmo lado ideológico que as pessoas que apelam à dita moderação. Cumprem a tarefa do terrorismo informativo que depois justifica os apelos contra o "radicalismo" - o qual não está no universo informacional, mas sim no pensamento livre e crítico e nos comportamentos concretos das pessoas que não querem seguir falsos moralismos.

Sempre que um reaccionário, um conservador ou, como agora também acontece, um liberal, apelam ao "bom senso", tremo. Em Portugal temos um óbvio problema de geração: os directores de informação e os políticos viveram o 25 de Abril e o PREC e pensam sempre em termos de quem conseguiu ou não ultrapassar as divisões radicais desses tempos. Repare-se como as acusações mútuas vão sempre dar à questão "onde estava no 25 (e no 26...) de Abril?". O Bloco desencanta uns artigos do Paulo Portas a favor do aborto, e o CDS sai-se com o antigo maoísmo e trostskismo dos seus dirigentes. O "bom senso" é o desejo atávico de eliminar da memória as radicalizações da juventude.

Ainda vamos levar algum tempo até que esse "trauma" desapareça. Espero por uma geração para quem o "bom senso" não seja um eufemismo para conservadorismo e "radicalismo" não seja visto como "revolucionarismo" mas sim como capacidade de "ir à raiz das coisas".

mva | 16:25|