OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


5.1.04  

Um pouco de teoria selvagem.

O post anterior corre o risco de parecer minorizar aqueles episódios apelidados de "homofobiazinhas". Na realidade, é de muitos e pequenos episódios deste tipo que se faz a repressão (e a auto-repressão). Talvez fosse bom estabelecer categorias de homofobia.

Assim, a primeira seria a Homofobia Institucionalizada, isto é, quando o direito e a política agem directamente no sentido de perseguir os lgbts: seria o caso do Holocausto Nazi, e de toda a espécie de leis (e a sua aplicação) homofóbicas - do encarceramento em Cuba, à lapidação e morte em muitos regimes fundamentalistas. Embora as diferenças de grau sejam importantes, o artigo do nosso Código Penal que fala em actos homossexuais com adolescentes deveria ser incluido aqui. Fazem parte desta categoria (na realidade uma sub-categoria, a que se poderia chamar Homofobia do Conhecimento Institucionalizado) os conhecimentos especializados que gerem os corpos e as vidas e que legitimam as decisões políticas e jurídicas: da medicina à criminologia, passando pela religião, encontramos pressupostos, ocultações, silenciamentos e/ou excessos de definição sobre as existências lgbt.

A segunda seria a Homofobia Social, isto é, os actos homofóbicos activos cometidos pelas pessoas nas suas relações em sociedade. Também aqui o grau varia: de assassinatos-performance como o de Matthew Shepard nos EUA, até aos micro-episódios que relatei, passando pelas expulsões de jovens lgbts de casa dos pais e actos semelhantes. Esta categoria tem como espaços-tempos não as grandes instituições e arenas, mas aquelas, mais imediatas, onde vivemos o quotidiano: a família e a casa, o local de trabalho e a rua (mostrando, aliás, como para muitos lgbts - assim como para as mulheres - a distinção entre público e privado é pouquíssimo real).

A terceira seria a Homofobia Latente, isto é, todos os mecanismos e dispositivos que servem, de forma pouco articulada e consciente (quer para quem exerce a homofobia, quer para quem dela é alvo) para reproduzir a ordem heterossexista necessariamente excludente dos lgbts. Aqui incluir-se-iam coisas tão diversas como as posturas corporais, a roupa, a linguagem, os role models, a publicidade, etc. A coincidência com a ordem de género (isto é, com uma determinada ordenação das relações e identidades de género cultural e historicamernte específica, e a própria existência do género como ordenador social), é flagrante.

Por fim, a quarta seria a Homofobia Interiorizada, aquela que as próprias vítimas da homofobia (se não incluirmos na categoria de vítimas os próprios homófobos...) transportam dentro de si como mecanismo de contenção, autocensura, ressalva, medo, etc., gerando a "esquizofrenia" que tão bem conhecemos (e que, como todas as esquizofrenias com aspas, pode ser "resolvida" rendendo-se a ela, ou usando-a criativamente como forma de libertação: expondo-a, demostrando as suas contradições, gozando com ela e, por fim, deitando-a fora).

Como categorias, servem apenas para organizar o pensamento e ajudar a mudar a realidade. Em boa verdade, as quatro interpenetram-se e, sobretudo, apoiam-se mutuamente. É esta confusão, aliás, que permite que se torne difícil à maior parte de nós decidir onde e quando agir.

A cada uma destas categorias de homofobia deveria corresponder uma forma de contra-homofobia. À primeira corresponde o movimento pelos direitos lgbt, travado no campo da política e da legislação, assim como no campo do pensamento crítico, sobretudo nas ciências sociais e nas humanidades. À segunda, correspondem as redes de solidariedade, comunidade e apoio. À terceira corresponde a comunidade enquanto lugar de criação cultural, isto é, enquanto lugar de experimentação de formas alternativas de vida e relação e enquanto lugar de criação de representações (de revolta, de humor, de provocação). Neste último caso, o mercado não pode ser esquecido como instituição bem mais complexa e criativa do que algum esquerdismo mais básico normalmente pensa. À quarta corresponde o efeito individual do somatório e intersecção das outras três. Nâo é por acaso que é o mais difícil de fazer e onde os resultados são mais difíceis de obter.

Tal como no caso das categorias, também as formas de contra-homofobia (que é como quem diz, de contra-hegemonia, já que a homofobia é parte integrante da ordem de género) se intersectam. De facto, ganham sinergia (essa palavra medonha...) quando feitas em conjunto.

Prontos, já chega.

mva | 17:42|